Lygia Clark

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A propósito da magia do objeto

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artMedium
DatilografiaArt Medium
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PortuguêsLanguage
date
1965
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Texto de Lygia Clark (1965) sobre o papel do artista, o ato de fazer superando o ready-made e o “Caminhando”, proposição em que trabalha no início dos anos 1960.
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1965 – A Propósito da Magia do Objeto

Quando um artista usa um objeto da vida cotidiana (ready-made), pensa dar a esse objeto um poder poético. Meu “Caminhando” é muito diferente. Em seu caso, não há necessidade de objeto: é o ato que engendra a poesia.

Que se passa então de tão importante com o ready-made? Nele, encontramos ainda, apesar de tudo, toda transferência do sujeito ao objeto, separação de um e de outro. Com o ready-made, o homem ainda tem a necessidade de um suporte para revelar sua expressividade interior. Mas isso já não é mais necessário hoje, pois a poesia se exprime diretamente no ato de fazer.

Qual é então o papel do artista? Dar ao participante o objeto que não tem importância em si mesmo e que só terá na medida em que o participante atuar. É como um ovo que só revela sua substância quando o abrimos.

Eu me pergunto se após a experiência do “Caminhando” não tomamos mais consciência ainda dos gestos que fazemos - mesmo os mais corriqueiros. Pode ser que isso se torne impossível, porque isso exige que afastemos a priori toda significação prática e imediata desses gestos.

Na primeira vez que cortei o “Caminhando”, vivi um ritual muito significativo em si mesmo. E desejei que essa mesma ação fosse vivida com a maior intensidade possível pelos futuros participantes. É necessário que ela seja puramente gratuita e que você não procure saber – enquanto estiver cortando – o que vai cortar depois e o que já cortou.

É necessário concentração e uma vontade, ingênua talvez, de apreender o absoluto pelo ato de fazer o “Caminhando” conservando a gratuidade do gesto. O ato do “Caminhando” é uma proposição dirigida ao homem, cujo trabalho, cada vez mais mecanizado, automatizado, perdeu toda a expressividade que tinha anteriormente, quando o artesão dialogava com sua obra. Talvez o homem não tenha perdido essa expressividade em sua relação com o trabalho – ao ponto de tornar-se totalmente estranho a ele – que para melhor redescobrir hoje seu próprio gesto revestido de uma nova significação. Para que uma tal mudança ocorra na arte contemporânea, é necessário algo mais do que simplesmente a manipulação e a participação do espectador. É necessário que a obra não conte por ela mesma e que seja um simples trampolim para a liberdade do espectador-autor. Esse tomará consciência através da proposição que lhe é oferecida pelo artista. Não se trata aqui da participação pela participação, nem da agressão pela agressão, mas de que o participante dê um significado ao seu gesto e de que seu ato seja alimentado por um pensamento, nesse caso a enfatização de sua liberdade de ação.

Quando a obra era apresentada toda feita (a “obra de arte”) o espectador podia apenas tentar decifrá-la – e às vezes eram necessárias várias gerações. Era um problema de elite. De hoje em diante, com o “Caminhando”, é no instante mesmo em que faz o ato que o espectador percebe imediatamente o sentido de sua própria ação. É uma comunicação mais direta. Não é mais um problema de elite.

Por outro lado, a obra antiga – o objeto fechado sobre ele mesmo – refletia uma experiência já passada, vivida anteriormente pelo artista. Enquanto que agora, a importância está no ato de fazer, no presente. “A arte se torna o exercício espiritual da liberdade. O acontecimento da liberdade é também a realização da arte” (Mário Pedrosa). Chega-se à obra anônima – cuja assinatura é apenas o ato do participante.

O artista se dissolve no mundo. Seu espírito se funde com o coletivo, permanecendo ele mesmo. Pela primeira vez, ao invés de interpretar um fato existente no mundo, muda-se esse mesmo mundo por uma ação direta.

Mesmo se essa proposição não é considerada como uma obra de arte, e mesmo que se permaneça cético em relação ao que ela implica, é preciso fazê-la. Através dela, o homem se transforma e se aprofunda, mesmo se ele não o quer ou não o sabe. É certo que assim o artista abdica um pouco de sua personalidade, mas pelo menos ajuda o participante a criar sua própria imagem e a atingir, através dessa imagem, um novo conceito de mundo. Esse desenvolvimento é extremamente importante, pois é diametralmente oposto à despersonalização – que é uma das características de nosso tempo.

Se a perda da individualidade é de certa maneira imposta ao homem moderno, o artista lhe oferece uma revanche e a ocasião de encontrar-se. Ao mesmo tempo em que se dissolve no mundo, em que se funde no coletivo, o artista perde sua singularidade, seu poder expressivo. Ele se contenta em propor que os outros sejam eles mesmos, e que atinjam o estado singular da arte sem arte.

ID
10170

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