Lygia Clark

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Dedicado a Norma Finch [Diário 2]

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DatilografiaArt Medium
inLanguage
PortuguêsLanguage
date
1964
dateBegin
1964
author
transcription




Que as coisas se cumpram integralmente em mim, não

                               importando a ausência do parceiro.                                                        

                                                              

                

                                                       Dedicado a Norma Finch






            O aproximar-se, a não comunicação, o desejo expresso por meio de gestos, o apaziguamento do mesmo através do ato do amor, o silencio que se segue, o instante do ato que se faz objeto tal o intervalo criado pela impotência da expressão da comunicação da palavra. O encontro, a percepção do interesse mútuo revelado, a atraçaõ da pele, até onde dela ou em si e não do interior percebido, não falado ou expresso, onde a sabedoria do corpo, ultrapassando o seu próprio meio de aproximação até a promessa do psiquismo sugerido mas nunca completado? A revelação das coisas e objetos na identificação pura do o percebido, na visão primeira do objeto como meio de comunicação. Da pureza reportada à infância contra o automatismo da palavra, expressão pura do momento. Do ser criança que bane todos os complementos, desde a racionalização até a dialética que surgiria conseqüentemente numa expressão falada, buscando a razão do comportamento, a razão da aproximação, do diálogo e da procura do inicio da formulação da origem. Palavra, verbo, ancora que segura, cabo que afasta, gesto que aproxima e também afasta no o querer e no banimento da solidão. O gesto que deglute o ato na imanência do seu significado. O ato que se supera sem explicações, mãos que se entrelaçam ávidas a procura de um sentido a dois, travessão que liga duas ou mais palavras, corrente que prende a tensão por forte faro, olfato que complementa e perfuma o instante do ato, fruta madura, sem razão aparente no seu existir, que não se pergunta, que se exprime só no seu existir. O aproximar-se sem o compromisso do tempo sem data, sem o conceito do futuro onde prevalesce a sabedoria do estar-sendo. O precário que dignifica o presente, que rompe com o conceito da continuidade. O ponto da tapeçaria que procura o parceiro no fio mais próximo, na escala de uma continuidade vinda da origem, a escolha sem regras, o jogo que se abre diante de dois parceiros, cúmplices discretos da mesma regra, não no sentido competitivo mas no da complementação do seu significado. A alegria do descobrimento do momento percebido, vivido na imanência da comunicação tão primitiva quanto primaria, tão autêntica quanto viva, trazendo em si um sentido nunca antes percebido, dois seres surdos e mudos, num mundo da dialética contraditória.

            A poética da substancia do ato, limpa de toda a representação da linguagem. O aproximar-se, o afastar-se, o reaproximar-se na medida do desejo, o fluxo e refluxo do mar que cobre a areia, subterrâneo da origem celular, profundidade que ultrapassa o ritmo exterior embora se exprima através dele, que ultrapassa o sentido da beleza plástica, berço de uma poética orgânica e biológica, cosmogônica na sua única razão de ser. Olhos no mar, percepção do ritmo, poética projetada a dois, identificada na comunicação do momento vivido, na razão da aproximação, do entendimento da cumplicidade da emoção, da libido gerada desta mesma cumplicidade. O ritmo da música que despe o ambiente de toda a sonoridade real, que abstrai o momento deglutindo-o que amarra os dois seres por laços invisíveis, que propicia o entendimento do tempo sem compromissos de datas, que abre perspectivas dentro do absoluto, bocarra que se abre para deglutindo, reduzir toda a tendência da autonomia do ser no um, e joga-lo na escala do par, na complementação perfeita dos vazios e cheios que se procuram na penetração do desejo incontido que supera a diferenciação dos sexos. O ouvido que se abre para a palavra que não se formula mas que é invalido pela língua que o modela no seu interior, a sonoridade da concha onde todos os sons irreconhecíveis tomam corpo e se materializam através dos nervos, numa vibração magnética que sobem a flor da pele como trepadeira, procurando no outro o suporte do seu existir. A boca que tenta se exprimir e não consegue, que se transforma em linguagem nela mesma, fazendo com a língua o vocabulário do entendimento, desde a carícia do tacto à mordida da raiva, da frustração ou da provocação. A boca que treme por não poder se exprimir pelo verbo, que tenta articular a palavra num esforço terrível e não consegue na impotência da não sabedoria mas também do conhecimento do que nela estaria inscrito, toma uma realidade nunca antes insuspeitada: de peça sobressaltante, à peça vital, coração do corpo de onde partem todas as potencialidades do comando na opção do momento. Polvo no ramificar-se, tentativa do abarcamento do significado do ser. Boca que se abre e fecha sem que o som se exprima, que engole de novo o significado pronto a ser expresso, peixe que no espasmo perde a consciência do seu habitat e agoniza na percepção d4e um espaço onde o não reconhecimento o induz ao ritmo frenético da destruição. A boca que adquire a voracidade da boca guelra do bicho que nasce e procura o seu avesso na língua do outro, no pênis, no mamilo e se satisfaz numa oralidade brutal, virgem e primeira. As mãos que complementam o desejo que sugerem a aproximação efetiva tomam a importância do gesto atípico do cego que descobre o mundo através do tacto. Mãos que se transformam em linguagem pura sem dialética, que não complementam mas que impõem uma realidade que busca no outro a certeza da identificação de dois seres no fundo iguais, embora aparentemente diferentes, pois o que articulam com a boca naõ passa de sons dilacerantes na impotência do naõ exprimir. Mãos que sobem e descem pelos relevos da arquitetura do corpo, que encontra nos cheios e vazios a complementação perfeita do par. Mãos que produzem e transmitem o formigamento dos nervos começando na superfície até atingir a cratera no seu fundo-forma ainda amorfa no começar da cristalização da porra. Mãos que traduzem no gesto toda a formulação do momento integral, que afasta para a aproximação, que foge para aprisionar, que busca através do balanço da rede Mozart até a bola impulsionada pelo chute no diálogo do corpo com o espaço. Mãos que dialogam com outras mãos na procura dos dedos que se entrelaçam, engrenagem da máquina primeira, oração que ultrapassa o entendimento, magia do ritual do corpo, mãos que fazem amor primeiro e que neste gesto propõem a opção na imanência do ato do amor. Mãos que reconhecem a fruta madura banhada em calda nos olhos do outro, a pedra calcinada nas unhas, nos dentes, o veludo da noite na pele, o emaranhamento de sexo no pêlo da estopa, a umidade dos hormônios na umidade dos pântanos, mãos que dão a medida do desejo que é pensamento, mãos que no gesto ultrapassam a verticalidade do parceiro medindo-o, que passeiam sobre o seu corpo na entrega do alongar-se, do convulcionar-se, mãos que se recolhem na sabedoria da parada, do intervalo, mãos que silenciosamente se cumprimenta depois da posse, no reconhecimento do desejo cumprido. O corpo que passivo se entrega a dislética, toma uma dinâmica coerente com o momento. O corpo que se volta à procura da percepção do instante, que se esconde por detrás das costas no momento da indagação, que se curva como um arco sob a pressão do outro corpo, que se alonga na horizontalidade no momento da posse, que se debruça sobre si mesmo no momento da náusea da não percepção, que vomita impropérios pela mímica, que se curva no cumprimento da fatalidade, que se transforma num trilho onde o outro passa fumegante como uma máquina com o seu desejo sobre ele, que se transforma num vaso onde o parceiro vai buscar a sua origem, “momento pleno” onde o ato vai se concretizar em toda a imanência da posse. O corpo que no ritual se põem de joelhos, expressando assim toda a reverencia de que é possuído pelo mistério do outro corpo que a ele se oferece: pênis que num gesto soberbo de sociabilidade se transforma num braço estendido pelo prazer de encontrar o outro. O corpo que se transforma na própria vagina, para receber este gesto de entendimento do conhecimento, abrigo poético, onde o silêncio vem cheio de propostas e a escuridão é o esquecimento da autonomia do um.       

    




                   Quando você partiu, um vazio completo sem plenitude nenhuma, me       

                   envolveu.

 Me perdi inteira no seu interior e busquei aflita algum ponto que me                sustentasse. Nada encontrei a não ser a sua imagem que ainda se fazia sentir,    presente na intensidade dos momentos vividos a dois.        

O silêncio que se seguiu apazigou as dobras e pregas deixadas por você e a paz voltou ao meu interior. 

Agora, na minha lembrança ficou você como um fato taõ abstrato quanto as pipas que os moleques das praias soltam no espaço.... e a linha que prende a sua imagem a mim se faz cada dia mais longa. 

Você é a pipa que desaparece encoberta pelo próprio tempo sem data da memória. 



                                                       Á Norma Finch

ID
65294