Carta a Raymundo Amado 

Meu querido,

Adorei receber sua carta e espero que venhas pois uma viagem poderia  te fazer um grande bem. E preciso que me envies com urgência o endereço de D. Olga ou da Maison de France para que eu lhe escreva. Europa em polvorosa com a invasaõ de Praga!

Foi ótimo- todos viram que a Rússia é taõ Imperialista quanto a América do Norte. Para quem ainda tinha ilusões foi bom, o que era doce acabou-se....

Eu aqui nesse apt lindo de morrer, recebendo noticias da morte de Aluízio o que me fez chorar as ultimas lagrimas que me restavam ate 1969 ! Virei viúva e agora depois que passou a própria viúva alegre... Naõ quero saber de nada. Estou toda enrolada no sol todos os dias como cobra pra armazenar energia para o inverno que abomino. Estou já recuperada dos trancos e barrancos que me deixaram alguns traços amargos como uma peladinha nervosa na cabeça do tamanho de um franco. Estou em tratamento antes que vire a própria escultora careca. Faço ginástica para conservar esse corpo e outro dia no banho tive uma revelaçaõ. Vendo a cicatriz da barriga que já está desaparecendo vi que eu havia feito uma cezariana depois de fazer a Cezariana Roupa-corpo-roupa.

Tenho tido sonhos incriveis: - Sonho que chove dentro de toda minha casa fora um pequeno espasso onde meto a minha cama e naõ saio dela para ficar ao abrigo da chuve. Sonho que estaõ abrindo minha cabeça e vejo sair de dentro blocos ensanguentados caindo no meu colo... Naõ se impressione. Estou ótima e a faze de amargar pós operatória e pos morte de Aluízio já passou. Quando tomo banho de sol e vejo minha sombra sinto-me incorporar e lembro-me da poesia do Décio Vitório.... Fico horas assentada num café sozinha vendo gente passar e hoje ao meu lado tinha uma arvore com grande tronco onde meu braço encostou. Senti um taõ grande identidade entre o mesmo e a minha maõ que mais parecia ter virado arvore. Isso é sensacional ! Ante ontem puz na palma da maõ 3 pedras e senti uma sensualidade taõ intensa que mais parecia uma maõ de gente contra a minha.... É magico e sensacional. Como ves estou mais bicho que nunca e ou irradio de mim essa imanencia ou encontro imanencia no ser pedra, casca de arvore no calor do sol.

Gostia de viver sempre essa experiencia muito mais importante que fazer objetos mesmo para propor essa imanência aos outros. Talvez se naõ os tivesse feito naõ teria encontrado na própria vida essa explendida gama de sensações. As unhas postiças já caíram e agora só falta tirar a peruca para me sentir a mim mesma depois de tantas transformações. Até parece a proposiçaõ das maõs e luvas que trouxe para a Bienal. É preciso de nos vestirmos com as roupas mais diversas para ao desnudar-nos esncontrar-nos na verdadeira nudez e aceita-la cada vez mais despida de artifícios no ato maravilhoso da verdade. Sinto encanto pelo meu corpo fresco, depois da operaçaõ, verde como clorofila cheirando a comida para passarinho. Bendito seja o Pitanguy ! As vezes penso que estou a própria narcisista  usufruindo em silencio como coisa secreta esse explendor de um novo corpo e dessa sensualidade de que  desabrocha exultante de mim ao encontro da natureza. Acho que essa estadia aqui pra mim é importantíssima naõ no sentido de algum sucesso mas do inicio de uma nova aventura extraordinaria a do ser só sem sentir dependência nenhuma afetiva, sem precisar de filhos. Netos, apesar de que os amo cada vez mais mas de outra maneira......

Estou crescendo Raymundo ! Já naõ sou a menina-bicho só, mas estou me transformando num ser maravilhoso que dialoga com um galho, na identidade profunda do ser carne perceptivo, aberto para todo tipo de identidade profunda naõ importa a forma naõ importa o gênero....Minha janela vale milhões, só vejo copas de arvores verdes que já começam a amarelar, o veraõ aqui aprece que vae ser curto. Existe um grande pateo no meio das arvores e existe plantado no ar (á noite tem-se a impreçaõ de uma grande lua) é o relógio do L’Observatoir. Começo a amar essa cidade. O povo passa na frente do café é impressionante. Tirando jovens a quase totalidade saõ espécimes humanos em desagregaçaõ. A tal ponto que uqnaod passa um preto tenho vontade de me ajoelhar e beijar e logar onde botou os pes de tanta dignidade e força que irradiam no meio da raça branca decadente aveadada masculinizada. O amarelo também resiste no seu tipo mítico. Mas é ainda o preto que impõe uma magia maior e a maior força também. Benza Deus. Acabei de ver um programa de televisaõ sobre a América latina. Foi um belíssimo espetáculo e quando aparece o Brasil numa grande manifestaçaõ comecei a pingar lagrimas pelo rosto. Foi o que sobrou de tanto já ter chorado antes. Como isso aí moço... Que maravilhoso povo alegre, superticioso, mágico nas macumbas, violento nas horas certas, feio e belo na propria feiura. O mundo é do sub-desenvolvido ora viva naõ ha a menor duvida. Li o livro do Che o seu diário. É belíssimo e a gente vê poruqe a juventude o incorpora hoje de uma forma taõ fominha... Ele naõ é o que tem carisma mas ele se revela na medida da açaõ. Ser existencial supremo. O mundo vae muito bem obrigada Raymundo ! Os jovens naõ se identificam mais com o comunismo naõ estaõ atrz de nenhuma autoridade que substitua a religiaõ ou qualquer mito exetrior a elas mesmas. Eles querem ser. Nada os impedirá de ser. É a consciencia mais aguda revelando o grande sentido da sobrevivencia. E eles sobreviveraõ quer queiram os dois blocos ou naõ, porque é uma atitude profunda de vida contra todas as ideologias enauilosadas mortas ou ainda contra toda sociedade automatizada. Eles estaõ mais vivos que jamais em alguma época o foram. Por esses jovens eu daria a minha vida. (nota para o censor)- “Naõ sou comunista, sou contra toda e qualquer ditadura seja da direita ou da esquerda )- Nem penso por hora em trabalhar. Eu também estou na espectativa do vira ser e ninguém me tira isso, para mim tambem é uma questaõ de vida ou morte, amem. Mil beijos e estou aqui te esperando. Se ainda estiver nesse apt tenho um gisalsinho lindo de morrer para virares gato, ou já o és, e ficares aqui tambem. Mil beijos da amiga 

Cobra.