Carta para Helio Oiticica. 17 de Maio de 1971
Queridissimo: até que enfim veio uma carta-comunicaçaõ me dando como sempre uma enorme alegria e tambem uma enorme saudade de você. O que gostaria de te comunicar é taõ simples e taõ complexo como a propria vida e nem sei por onde começar. É por esa razaõ que gosto de novelas na televisaõ, nunca acaba de acontecer coisas e tudo é como na vida. Comigo é sempre assim – enquanto eu vivo bil voltas em volta da terra o resto do pessoal daqui que faz arte, está marcando passo, indo para traz e nisso nada é dinamico, tudo é pausa e morte. Na propria vida nota-se o processo. O quotidiano que para mim é sempre mágico rico e nova experiencia, para eles é a rotina, o vazio nada representando como enriquecimento, como maturaçaõ. Até acho que invento minha propria vida, que a recrio todos os minutos ela por sua vez me recria á sua imagem daí vivo mudando, vivo me interrogando, maravilhada, sem controlo de nada dos minimos acontecimentos, me deixando fluir, despojada de quase tudo, guardando somente minha integridade. Me sinto como calderaõ da propria porra, processo, me sinto toda lá até antes do nascer e acho que é esse misturar, onde aperece óra a menina, o leite na mamadeira, adulta-adultera, a adolescente, a louca, a velha de 5;000 anos de idade, a atual que nunca é uma só e a consciencia naõ é de colar pedaços que foram por mim quebrados com culpabilidade mas o renascer inteira de novas experiencia que saõ antigas como o proprio nascer, ou até antes. Sem nada controlar eis a contradiçaõ; me reconstruo faço minha biografia, eis-me qual obra antes projetada para fora dividindo pessoa e coisa, hoje uma só identidade. Onde a patologia, onde a saude, onde a criaçaõ ? Nada sei. O naõ saber é lindo é a descoberta é a aceitaçaõ da mistura das situações das decalagens, das integrações, do recomeço, do naõ tempo linear, da percepçaõ pura, da cultura que nunca tive, tendo por isso mesmo que a fundar a minha propria que é posta em questaõ sempre, a descoberta nunca pára e as vezes penso que viver uma vida é viver todas as fazes anteriores da humanidade.
Depois de Carboneras na redescoberta do meu Eu em que deixei de ser “o outro” tudo mudou em mim. Perdi o estado de graça vivido assim e provavelmente catalogado pelos intelectuaes de ninfomaniaca ou pelos burgueses de prostituta, comecei a sonhar com “o casal” sonhos taõ integradores dessa imagem que fora por mim taõ, quebrada e destruida antes, que o depois de acordar era o trauma de se estar só com 50 anos sem possibilidade de ser casal com ninguem. O dormir passou a ser o medo da fealidade do amanhecer, da solidaõ profunda do ser–se-só com o conhecimento do inconsciente do quanto é belo o casal, a importancia da experiência... No momento em que aceitei a realidade, espichei o cabelo para traz, me amarrei de tal maneira outra vez que a idade desapareceu já naõ era problema a solidaõ, o sonhar já foi o suficiente para que a experiencia fosse integrada no meu interior. Estou numa fase belissima punho feixado, peça inteiriça, tranqüila, me rindo dos outros que agora me acham menos puta, exatamente agora que perdendo o estado de graça e redescobrindo o meu Ego readquiri de uma outra maneira o pecado original... Naõ é uma maravilha o conhecimento que se pode adquirir atrvez de uma experiencia pessoal de um antigo e lendario pecado?.... E naõ é fantastico que a propria aceitaçaõ no meio cultural venha naõ de um estado de graça mas de uma aparente identidade tabú do que se chama pecado? Minha estadia em Belo Horizonte foi em duas etapas. Na primeira em que meu pae pensava que naõ ia mais voltar para Paris, me tratou como namorada com enorme carinho e houve pela primeira vez dentro de mim uma enorme aceitaçaõ da minha casa de infancia, do ventre de minha mãe, do pau do meu pae. Jamais senti tamanha paz e alegria num contexto que antes me destruia completamente sendo insuportavel a permanencia no meio onde fui gerada com gozos, onde nasci entre dores e berros, onde quase morri de fome os primeiros mezes de vida, onde cresci me sabendo fora da familia, arrancando cada noite minha pinta, sinal vivido por mim como um estigma, prova que naõ era como os outros, afastando toda imagem dramatica da minha infancia, hospicio entre loucas no banho de duxa, jogada na agua gelada da banheira de madrugada dormindo ainda (meio de tratamento recomendado pelo medico da familia) botes de cobras, cascavel, urutu, em baixo dos pes de menina na volta do sitio, caixa onde o pae levava as mesmas para o Instituto tirar o veneno fazendo com o mesmo o soro salvador, poraõ rastejante, cheio de escorpiões onde entrava para tirar o vinho do pae que queria agradar, os galos de briga que a menina pequenina raspava os pelos massageava na companhia do pae, assistindo a luta, o olho furado, o galo morte. A faca da empregada louca, corrida escada acima, o avô que acariciava contando toda a mitologia em linguagem crua e real, os pesadelos da gosma que saía da boca, que só a pouco tempo integrei e reengoli, o tunel sempre me emparedando, me separendo como morta-viva, as unhas roidas até o sabugo, a feia, a engeitada, a menina que fugiu de casa para vender doces com a preta Deolinda que chamava de Tia Olinda num fabuloso ato falho, a menina deflorada, assentada debaixo de uma arvore numa enorme passividade tendo os dedos das maõs e dos pes destroncados, pelo tio sádico morto, os murros que dei para competir, os gozos que senti nas safadesas de criança, a consciencia que tinha um buraquinho para ser preenchido; o colegio, a primeira experiencia homosexual por falta de parceiro homem, quando fui alagada pelo desejo e virei mulher-menina, depois.... bem depois toda uma vida para recompor ou construir uma personalidade que nunca está completa, sempre numa enorme decalage entre o interior e o esterior. Na volta a Belo Horizonte quando meu pae soube que ia voltar e ele teria ainda que me mandar dinheiro para me ajudar, ameaçou quebrar todos os meus dentes, minha boca que o mando tomar no cû no passado, que fabulosa vitalidade! Parti para ele topando a briga e ameacei tambem quebrar tudo nele, 80 e 50 anos, imagine, quase quebrados, quase na policia, quase no hospital. Perdi a imagem do pae até o abismo da porra e só pude reaceita-lo num grande pileque no Rio e vi claramente que se tivesse de escolher, escolheria ele mesmo. Herdei-lhe toda a loucura, toda a violencia, toda a lucidez dentro dessa loucura, naõ tendo dele herdado somente o penis o que hoje posso aguentar tranquila, tranquila...Veja anjo: tudo mexe comigo e isso tudo teve a sua vez nessa minha nova faze. Até aceitar concertar minhas fazes antigas de trabalho vejo agora o desejo e a necessidade.... É como se pudesse reparar os estragos que eu mesma fiz nates e que foram reparados agora! Já naõ sinto o “desespero da nostalgia da normalidade” e nem o “medo da loucura” o que sempre foi abalança do que a minha vida me deu. Fora de toda normalidade, de toda a patologia, de toda a cultura de todo contexto aparente eis-me aqui e o meu testemunho sou eu-obra naõ é a obra que fiz.
Ao mesmo tempo me assumi como personalidade colando Clark e Lygia em delirios de alegrias e medos. Tambem tive a consciencia no Brasil que aqui estou superprotegida e tudo que lá passou é que é vida pra valer. Vi emocionada, Eduardo cair numa crise chorando como uma criança, ergui nos braços minha filha numa crise prè-edipiana: (descobri maravilhada que sempre amei o Shemberg tendo ido a Saõ Paulo onde a briga e a violencia foram taes que se tivesse uma bomba destruiria o mesmo, a mim propria a cidade imensa, a massa humana, me senti atraída por ele pela primeira vez fisicamente e o detestei quando falava, fála velha sem novos conheciemntos, cheia de magía negra, de conceitos antigos mas o Shemberg para mim é a unica permanencia que sobrou! Gigante adormecido mas gigante, sempre hoje amanhã e depois!) (Senti o abrazador amor que me liga ao Vitinho, paixaõ da minha vida e o seu abraço na minha chegada foi pausa no tempo onde em silencio nos dizemos juras de amor eterno, de paixaõ de fogo, de larva de vulcaõ, aterrador, esfomeado mas verdadeiro. Descobri emocionada que o filho que mais amo é o Alvaro, mas a paixaõ é o Eduardo mas a maior comunicaçaõ é com Beth. Que mundo maravilhoso, é como se cada um corresponda a uma dobra ulterina onde foram gerados mas separados, embora no mesmo útero!) De volta a Paris vim magra, muito magra e traumatizada. Só agora recomeço a engordar e a melhorar de cara. Encontrei todos do nosso meio na mesma, ou escondem a vida ou estaõ mortos? Minha vitalidade parece que agride fui super-agredida embora super-acabada e super-envelhecida, mas naõ perdoam minha vitalidade, o meu renascer, a minha negaçaõ de cada dia passado, minha descoberta de cada dia novo. Nessa óra encontrei o velhinho Pedrosa, adoravel, vivo como um menino, inteligenterrimo, jovem como poucos, sabendo escutar e gigante na comunicaçaõ. Nos vimos diariamente e fiquei arrazada com sua partida. Chorei muito, naõ somos crianças, alguem acaba morrendo e a morte que antes era uma coisa abstrata para mim se tornou concreta. Na doença aqui numa carta em que meu pae dizia “-Volte, a gente nasce, trabalha, vive e morre no seu proprio paiz-” Agora sei que vou morrer mas tambem bastou tomar consciencia desta realidade para que o problema desaparecesse como o da idade.
Isso naõ me afeta no quotidiano a naõ ser no caso de uma despedida real como foi com o Pedrosa e tambem, na saída do Brasil. Adorei o seu texto que me mandou. Belíssimo! Só naõ gosto é do Pasquim acho tudo intelectualizado, as piadas infames, aí eu prefiro o France Dimanche que pelo menos é popular mesmo. Eu por óra estou parada. Fiz algumas experiencias só com o corpo sem objeto algum. É curioso você encontra novos relacionamentos entre os corpos atravéz de novas percepções de espaços. Naõ sei se é valido ou naõ. Se é novo ou velho. Só sei que para mim é uma nova fase que começa e naõ sei para onde ir. Já ando cheia do participante e já chego até a agredi-lo quando saõ embecis ou ainda ando detestando gente que nada experimenta que diz:- “muito bem, você está fazendo novas coisas”, que imbecilidade Deus meu... que cretinisse ....tudo está escrito errado mas o sentido está certo. Já nem sei para quem falo. Até parece que falo para mim mesma, isso é monologo naõ ? Essa contradiçaõ as vezes me mata ou ainda me matam quando me perguntam se já recomecei a trabalhar, como se fosse maquina de fazer coisas, putos vampiros, depois que mandei meu pae tomar no cû quero mandar o resto da humanidade imbecil que me cerca. Aqui sobra a Violeta que é inteligente, viva torturada, se indaga, pode dialogar na medida da pedida. Vi outro dia na televisaõ um programa sobre N.Y. chamado “A alma” e vi coisas surpreendentes em materia de psicodrama coletivo. Muita coisa lembrou o meu proprio trabalho e a magía negra do Brasil. Só que é uma situaçaõ artificial e naõ coletiva nem tribal. Todo mundo permanece frio enquanto é declanchado num casal ou pessoa uma cartazes caindo elas num pranto desbragado ou se contorcendo virando bicho de garras e tudo. Até eu chorei de emoçaõ, de longe, de longe, de longe. Mas ninguem mais chorou, porque? Você escrever taõ bem, é maravilhoso, outra forma de se expressar mas a minha fraquesa e minha força é que nada sei fazer em si nada me interessa. Uzo diferentes meios quando o pensamento pede. Á priori nada sei fazer. Ainda topo galerias porque naõ ? Elas é que naõ me topam na realidade. O trabalho que agora faço é que as impede de se interessar. Sempre digo a Jean Clay: naõ sou contra nada à priori nem quero criar uma nova elite. Nos lugares mais recuperados é que talvez seja mais importante tentar uma comunicaçaõ. Naõ é comodo isso naõ... Fiz um espetaculo num castelo fóra de Paris e a solidaõ da naõ-comunicaçaõ foi taõ terrivel que aqui chegando bati os dentes de frio de morte. Tive que sair e ir ao botéco do lado para tomar um chocolate, me assentar ao lado de outras pessoas que tomavam também um café, para me sentir outra vez gente, igual a qualquer pessoa...... Me reequilibrar no gesto mais banal e quotidiano, esse é o meu processo. Se somos recuperados acho que recuperamos por nosso lado também. Eu quero é gente, naõ importa côr, idade, nacionalidade, estado de sanidade mental, burgueses, proletarios, crianças naõ importa, eu quero é gente, o sistema que se foda! Ando rindo muito sozinha, mas espere, naõ pense que virei debil mental... Estou começando a me interessar para ler alguma coisa. Só o Le Monde naõ suporto é chaterrimo! Naõ tenho vontade de ver nada e a verdade é que aqui nada se pode ver a naõ ser velharias e passado. E isso naõ interessa naõ. Recebi uma carta do Mississipi Arts Festival, querem publicaçoes sobre meu trabalho, viram uma pequena foto na Realité inglesa. O Robot sairá dentro em breve. Terá 60 paginas e tem coisas sobre Japoneses, Medalla, você eu e outras pessoas. Veremos no que vae dar. Guy nunca me escreve mas o adoro muito. Passei 3 mezes no Brasil incognita, mas em compensaçaõ o Cae passou como uma estrela de primeira grandeza, lindo santo, inteligenterrimo! Virei noticia do Ibraim, devo estar no fim! Estou bolando tambem trocas no sentido tribal, isso naõ é uma carta mas sim um monstruoso vomito.... Na proxima vez será mais regrada. Escreva sempre que puderes. Te amo muito-muito.
Beijos e love.
Clark