Lygia Clark

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Breviário sobre o corpo - 3 [Diário 2]

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DiaryDocument Type
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DatilografiaArt Medium
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PortuguêsLanguage
date
1964
dateBegin
1964
author
transcription

A boca que se abre num espasmo, deixando escapar o grito que anuncia o nascimento, no ato de deglutir uma alma, que se fecha voraz no seu cheio correspondente que é o bico do seio, dando imediata funçaõ a guelra-garganta no ato do engulir, do estômago ao duodeno, dos intestinos que se ondulam como cobras, ao ânus que expele o alimento digerido mas que naõ tem o poder de expelir o ar expressivo e significativo que, habitando o corpo, lhe empresta a identidade do ser. O ato do engolir, espasmo do peixe fora do seu elemento, mar, plascenta, útero, oceano cósmico envolvente, sono ou morte. Fole que impulsiona o ar para dentro das entranhas, pulmaõ que dá sentido ao corre-corre frenético da vida que formiga num “caminhando” dirigido desde as pequeninas veias até mais importantes, veias de retorno onde a válvula se abre, oleosa e onde as dobradiças são invisíveis, chute, impulso, sacudidela, nervos que comandam para o cérebro toda a sensaçaõ do “ser” sendo que foi plantado na vida, no ato do transplante, apêndice arrancado do tronco principal, enxertado na vida, depois de ter furado o grande túnel da vagina, subterrâneo vivo, esgarçado num ritus de alegria, alívio e violência. Gosmas que antes nela se colavam superpostas em camadas, são agora expelidas no esforço da sobrevivência, abrindo passagem para o ar que a penetra, secante do céu da boca, nadador apressado numa corrida competitiva, mergulhando na garganta entre tendões, virgens mastros de bandeira agora hasteados desfraldando os pulmões que se deixam folhear em lâminas soltas, envolvidos pelo espaço do mundo exterior. Boca que é fornalha, boca do forno onde o combustível varia desde o ar até o aprendizado da palavra, verbo, início da expressaõ da comunicaçaõ. Boca onde brota o grito, som que foi modulado, cultivado até a formulaçaõ do alfabeto, som que ao sair dela, penetra o ouvido e impulsiona a resposta, o impropério, ou o suspiro do fim, válvula que vacila no seu ritmo, num desvario de pêndulo desregulado fora do seu compasso, até o aquietar do ante-ser que foi expelido na última parcela do ar que o habitava, encerrando o ciclo do começo ao fim. Cratera, buraco onde entra a bola de golfe que aí se aquieta, onde dorme a larva, toca do bicho que espreita, vagina proprietária do pênis, cárie que acóita a dor, ouvido-túnel condutor do som, umbigo-cicatriz marca registrada do passado ulterino da dependência da guerra do ato do separar-se, fossas nasais que tomaram a si a rédea da cavalgada do ar que agora penetra no compasso do ritmo vital. Boca, antro da língua, peça sobressalente que impulsiona desde o ar até a palavra comprimida, cobra no ato do amor, que procura o. avesso no parceiro, perdigueiro do faro preso por forte corrente de tendões que naõ a deixam submergir no outro. A boca que devora para o estômago, para o cérebro, para o amor. A boca que vomita o alimento, a palavra no impropério o escarro o arroto, o canto que é som e toda escala musical derivada da descoberta. Boca, fronteira onde se esconde a palavra, o desejo, a fome, que se fecha nesta defesa, arapuca onde o pássaro é capturado, rede onde o peixe é cercado, curral emparedado pela cerca, roda de gente que completa um círculo, anel de compromisso que cerca o dedo. Boca que é o abraço da realidade, que come o espaço do mundo, que expele o tédio no bocejar que é modulado e nela expresso, que passa o certificado do bem estar, ao processo da dor aliviada. Sustentada pelos maxilares, paredões da fábrica da engrenagem dos dentes que irrompem como vulcões explosivos na medida da sua apariçaõ. Dentes, entes inseparáveis, geminados na sua aproximaçaõ, peça única subdividida em parcelas, trilho por onde o alimento passa, esmagado no contrair do estômago, pântano agora inundado de água pronto para afogá-los na falta da identidade da mistura. Bolo alimentar anônimo na sua diferenciaçaõ, abstrato no seu aproveitamento, desde o elemento gordura ao arranhar das unhas, à gelatinosa consistência da fruta que são os olhos banhados em calda, ao fio do cabelo, linha que costura a fisionomia emoldurando-a, ao pêlo do sexo, estopa enroscada elástica cheia de eletricidade, ao pêlo anaõ dos cílios e sobrancelhas, patas autônomas de insetos, superpostas em finas camadas, suco das glândulas, frutos que se embriagam na sua maturidade ou passas secas já sem a especificaçaõ dos hormônios. Boca inventiva que morde beijando, caranguejo cujos tentáculos se fundem no parceiro, boca de esqueleto cuja estrutura é armadura sem uso, casca do caramujo cujo vazio expressa a vida que o habitou. Boca que sopra, chaminé da fábrica, de fogão, de vulcaõ, de navio, consequência do forno que a alimenta e a faz soltar rugidos de, feras, boca de fera, coraçaõ em carne viva, impulcionado pela fome. Boca de gente-fera que arromba cofres, quebra vidraças, mata quando há o encontro, ou se destrói quando não há o que roubar. Boca-bico, de mamadeira, de pássaro, que se abre na ginástica do balé, da cobra cuja língua sai em flecha, dos roedores sorridentes cujos dentes se debruçam na anedota. A boca da fábula que conta histórias, a boca da história já desdentada, a boca da criança esponja que se embebeda, do bêbado, labirinto onde a identidade se perde, do.orador, linha passada entre cada dente na tentativa da ordem da imagem, da puta onde o palavraõ adquire o brilho frenético do ouro, do homem da rua, onde nasce a anedota que corrige a história, do poeta onde predominam os vazios sobre os cheios. Boca escondida pelos bigodes, sobretudo da sensibilidade, pelas barbas, cobertor que naõ respeita o veraõ, pelo lábio leporino, falso arremate da costura vista pelo avesso. Boca do mudo, instrumento sem manuseio, liquidaçaõ do som expresso, caderno de música sem pauta, o compasso no silencio, cheio de significado. A boca da vagina, cuja entrada é o emaranhado do êxito, arrolhada no seu avesso pelo hímen, porta arrombada pela forma que a complementa. Caverna que convida a um abrigo poético, onde o silêncio vem cheio de propostas e a escuridaõ é o esquecimento da autonomia do um. 

ID
65157