Lygia Clark

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Antes de ter o tal sonho [Diário 2]

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DiaryDocument Type
artMedium
DatilografiaArt Medium
inLanguage
PortuguêsLanguage
date
1964
dateBegin
1964
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transcription

            Antes de ter o tal sonho, que acabei de contar, eu pensei ainda em realizar um trabalho que talvez tenha também ajudado a essa maturaçaõ interior. Pensei em realizar um grupo de capacetes ligados pelos ouvidos pelo tubo “respire comigo”. As pessoas os colocaraõ na cabeça fazendo um círculo para dentro. Cada pessoa começará a mastigar um chicletes de bolas e estas sairaõ pouco a pouco para o centro como grandes bolas de ectoplasma. Ainda tenho outros projetos. Um capacete geminado com grande fecho éclair na frente. Duas pessoas dentro que faraõ uma pessa totêmica.

            Também anterior a esse sonho o projeto do labirinto vivencial. Todo escuro, será dividido em partes: Penetraçaõ, Ovulaçaõ, Germinaçaõ e Expulsaõ. No fundo é a própria vida ulterina e o nascimento. A penetraçaõ é um ambiente escuro cuja entrada será feita através de dois grandes elásticos que se interpenetram. O indivíduo cai no interior do ambiente em cima de uma lona elástica e fica como se estivesse dentro de um ovo. Perderá um pouco o sentido da direçaõ e para passar deste para a ovulaçaõ encontrará através do tacto o mesmo sistema: dois elásticos pretos trespassados. A germinaçaõ será toda forrada de espuma nochaõ que fará o expectador afundar sobre ela. Balões no espaço passaraõ por ele entre ele que descobrirá a forma através do tacto também. Outra passagem essa já diferente para a germinaçaõ. Esse ambiente será todo de plástico com água e uma pequena luz fará com que o expectador se sinta descansado e possa aí até deitar em cima de um colchaõ de plástico com ar. Várias passagens se sucedem depois disto e estas passagens seraõ de várias matérias como pêlos, gosmas, matérias ásperas etc. Quando ele conseguir vencer essas passagens ele pisará em bonecos de borrachas que gritaraõ na medida em que forem pisados. O expectador entrará neste momento no último recinto que terá pêlos até a cintura vindo do teto. Uma borboleta o fará sair depois de empurrada pelo corpo do expectador. Ele se achará fora mas se verá projetado num grande espelho deformante.

            Outro projeto: 

            Invitations aux voyages- Uma antecâmara onde o expectador pegará um saco e encherá com coisas diversas do seu gosto. Até comida estará a venda. E bebidas também. Entrará depois numa sala onde estão colocadas bicicletas que seraõ pedaladas e naõ sairaõ do lugar. Uma grande tela para projeçaõ na frente dele. Apaga-se a luza e projeta-se uma estrada filmada como se ele expectador tivesse vencendo o tempo da mesma pedalando as bicicletas. Depois de algum tempo o filme pára debaixo de uma árvore por exemplo e a luz acende um pouco. Todos que quiserem desceraõ das bicicletas e iraõ mais para a frente com suas cestas de sanduíches e bebidas para fazerem um piquenique. Quem quiser pode descer e ler um livro na sombra das árvores. Podem namorar etc. (Neste ponto eu posso modificar e fazer o seguinte. Filma-se antes e projeta-se nesta hora expectadores dentro do ambiente contra a tela, bebendo comendo e chamando os que fazem a verdadeira experiência para se juntarem a eles) Daí para frente posso fazer o que quiser.

            Quero realizar o filme também somente sensorial. Já é um projeto mais antigo. Somente o som e a tela sem imagens que marcará o tempo da açaõ que será advinhada peloe expectador Depois farei outra experiência mais complexa que fará o expectador criar a açaõ ele mesmo.    

            Tenho dois livros sensoriais para realizar. Um cheio de bolhas de plásticos com água e outras coisas. O segundo já bolado há tempos será todo de fecho-éclair e dará o tempo da cor. (essa idéia foi realizada em quadro pelo Leiner de Saõ Paulo e eu naõ conhecia o seu projeto.) A minha idéia nasce dos fechos da roupa-corpo-roupa pois os fechos para mim saõ como cicatrizes do próprio corpo.

            Quero ainda um conjunto que soltará bolhas de sabaõ pelos canudinhos. Mascarados. 

            Pensei conversando com o Franz Weissman que está lidando com o ímã, uma série muito bonita para o expectador vivenciá-lo. Dois capacetes com ímã na cabeça. Saem os dois com as cabeças baixas como gado quando quer atacar e começam a se procurar até que os ímãs se grudam e naõ se separam mais.

            Cintos também com ímãs e umbigadas nos expectadores. Um campo minado com botas portadoras de ímãs. Os expectadores começam a andar em cima tranqüilamente até que um pé será atraído pelo ímã e preso no chaõ.....Como me divirto com essas idéias...Tenho que refazer os bichos, quadros, plásticos e ainda começar a realizar tudo que contei.

            Meu filho mais novo que está sem opçaõ e tem um grande talento pois tudo que fez até agora supera os outros pela disponibilidade de realizar qualquer espécie de objeto. O objeto que ele realiza é fundamentalmente diferente dos outros artistas pois ele naõ tem sequer o problema de romper com o espaço tradicional do quadro para ir para o espaço. Diferença de 4 anos entre ele e o Gerchman e já é uma geraçaõ absolutamente diferente. Como a época anda rápida hoje! Às vezes, melancólica penso ser esse filho meu, o último individualista de uma época e que talvez ele ainda faça uma experiência solitária, o oposto dos Hippies, no sentido místico.... O problema dos Hippies é muito da civilizaçaõ Americana do Norte pois lá a automatizaçaõ e a falta de personalismo já é realmente um problema do homem contemporâneo. Nós aqui no Brasil talvez ainda tenhamos uma série de proposições a fazer pois, como país subdesenvolvido economicamente e culturalmente, ainda encontramos alguma comunicaçaõ a fazer. Na minha dedicatória aos jovens no meu livro que teria sido editado há dois anos, se a galeria naõ tivesse falido, eu já dizia: “Esses jovens que reverencio, naõ encontram nada para vencerem ou derrubarem como conceito como as outras gerações. Eles encontram um “vazio” e por isso mesmo, tem que se voltar para dentro de si mesmo para encontrar sentido neles mesmos e com isso, emprestar o mesmo sentido à vida.” Saõ os primeiros jovens existenciais cuja posiçaõ é idêntica a nós artistas. Como fundimos sujeito-objeto, introcertemos o sentido religioso e abolimos qualquer comunicaçaõ de ordem transcendente o que lhes resta é a imanência do ato que já traz em si mesmo o devenir, e daí o querer sentir o nirvana na própria vida.  

            -Agora tenho novas vivências que descobri através dos canários. O casal depois que os canarinhos já tinham uma semana de idade começaram a cruza e como resultado, abandonaram os filhotes. Eram 4. Tive que alimentá-los de hora em hora e fiquei naõ só exausta como também devo ter me identificado com eles na sua voracidade. No décimo dia, estava no ponto de ter uma crise nervosa e pensei: ou eu me livro do meu problema de rejeiçaõ e carência ou vou para o hospício. Saía com eles numa caixa de sapatos e em qualquer lugar abria a tampa para alimentá-los. Na última noite, exausta estava jogando uma partida de crapeux e enquanto fumava escutei saindo de mim tres pios de canários! Fiquei em pânico pois pensei que já estava virando um deles.....Afinal o casal tornou a aceitá-los e estou livres deles. Vi a fêmea fazer força para alimentá-los mas quando a comida estava prestes a ser vomitada no bico deles ela engolia outra vez o próprio vomito Percebi que ela estava na fase de introversaõ e naõ podia por para fora nada dela. Ao contrário do macho que se extrovertia alimentando-a e também aos filhotes. Através desta percepçaõ tive toda uma série de vivências muito importantes. Senti que a minha exprssaõ é toda do tipo introjectar. Pensei no Helio Oiticica que muita gente pensa ser parecido comigo e percebi que nele é o oposto, pois ele se expressa na extroversaõ.     

ID
65305