Lygia Clark

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Princezinha [Diário 2]

documentType
DiaryDocument Type
artMedium
DatilografiaArt Medium
inLanguage
PortuguêsLanguage
date
1966
dateBegin
11.07.1966
author
transcription




Rio de Janeiro 11 de Julho de 1968




            Princezinha, 

            O Brasil para hoje. Estamos aflitos, roendo as unhas e grudados no rádio á espera do primeiro jogo que será como deves saber: contra os Búlgaros....Que bela palavra, taõ forte que diríamos até parece um palavraõ. Jogar contra um palavraõ é jogar forte. Enfim como a palavra Búlgaros é trancada, cadeado, punho fechado, em compesaçaõ a palavra Brasileiros é escala aberta e se presta a inúmeras deformações tais como invençaõ, inventividade inventaçaõ e outras palavras que podemos inventar ao nosso gosto. Já naõ tenho unhas para roer e isto é bárbaro... Prometo se ganharmos deixar as unhas crescerem e parar de fumar (continuo fumando desbragadamente 3 maços por dia...) Naõ posso prometer minha castidade, aí essa eu já perdi milhões de vezes e às vezes ela é recuperada em funçaõ do “o outro”. Naõ posso prometer deixar de usar o seu presente que maravilha, só penso em ganhar dinheiro para ter roupas taõ lindas como esta que você me mandou e para também jogar poker a dinheiro ! Estou guardando esse belo presente pijaminha, para o primeiro incauto viajor que apareça dentro do meu raio de açaõ... Tenho vontade de botar um anúncio no jornal:- Avó, porém ainda com grande coraçaõ, procura um parceiro para estrear uma linda peça de lingérie, vinda de Paris, presente de princezinha-pessoa. Pessoinha-poeta, sei que fazes agora uma série de experiências que achei um primor....Sérgio me explicou. Belíssima a idéia – grafologia do traço dado no papel que marcam outras páginas como camada de tempo, linha da vivência do acontecimento. Adoro essa delicadeza do inserir da vivência do tempo do seu próprio nascer... Olhe as suas maõs princezinha. Elas estaõ marcadas também pelo nascer de cada experiência e por detrás de cada traço há uma marca profunda da vida concebida dentro de seu tempo. Experiência essa taõ você, taõ de dentro, taõ atual, taõ inventiva – Maria Luiza, eu gostaria de ter inventado o que você realiza. Juro por Deus. Isto quer dizer também: eu gostaria de ser você, de ter essa delicada percepçaõ da vida, das pessoas, das coisas... eu que sou o oposto na minha agressividade permanente no confronto com o mundo, as gentes, o objeto. Estou também muito interessada em exprimir uma formulaçaõ que chamaria “proposições para cegos”; tudo se passa de uma maneira sensorial, pelo tacto que usa suas maõs para exprimir e consciencializar estruturas cobertas por elásticos pretos que se exprimem como ovo-mortalha, vida-morte. Agora estou tragada pelos sons que me derrubam a cada instante, sorvida por ele na vivência da tontura física, estou desarticulando o meu próprio corpo para talvez no futuro, vir a articulá-lo novamente como “organismo Total”. A minha vivência atual: O mundo é um grande Bicho que dorme tranqüilamente e se presta como um suporte para que o homem construa sobre o seu corpo pequenas arquiteturas em forma de grandes cidades por entre seus membros, em cima do seu tórax e até dentro do seu corpo. Às vezes o Bicho acorda e no espreguiçar-se, derruba cidades muda o curso do deu mijo, rios, e propõe novas plataformas à disposiçaõ do homem-formiga que recomeça a sua construçaõ sem ter a mínima idéia desta entidade terrível, adormecida no seu silencio imóvel e denso. Há uma proposiçaõ nossa de fazer parte desta totalidade. Trabalhamos na superfície desta idéia mas um dia com a consciência da profundidade deste “caminhar” entraremos todos dentro do seu ventre e faremos parte integrante deste todo. Eu começo a querer sentir através do meu corpo o próprio corpo desta besta para, no reconhecimento, haver a identidade profunda do meu Eu e de todo o resto. Proponho ao outro a experiência para que haja nele também este processo, é necessario todos para que esta identidade se processe. Você, nessa maravilhosa experiência, vive a identidade do corpo-maõ com todas as camadas de sedimentaçaõ secular já exisridas na formulaçaõ do Bicho-orgânico, traço-linha, memória do processo anterior que se faz presente no instante da vivência. O que adoro na sua experiência é que é um problema de tempo e o espaço só é formulado para na medida em que é expresso pelo mesmo dar corpo a ele. A palavra se insere também no tempo. Gostaria de ter um poema-tempo seu. Você poderia me mandar? Sei que os meninos vaõ bem e que Cristóvaõ está fazendo colagens. Os meus vaõ bem e que Cristovaõ está fazendo colagens. Os meus vaõ bem e mal. Mas é deste tempero que vamos equilibrando a vida. Eu tambem vou bem e mal. Sem dinheiro, sem amor, mas encontrando através do trabalho, novas formulações muito importantes pois o importante é continuar viva. Estou bolando cinema sem imagens para dar uma medida do som ao outro, como experiência autônoma “vetor da imagem”. Depois te conto. 

Meu corpo está ultra sensível. Naõ posso sentir nada na pele sem registrar. Aqui tudo na mesma quanto a política. Estamos todos letárgicos, com fome, a vida é cara, muito cara. Os artistas trabalhando apesar de tudo e Helio fez uma belíssima exposiçaõ na G4 nova galeria de arte. Os novos se procurando e com grande qualidade. Nova moda O Happening. Acho essa formulaçaõ execrável, na maioria das vezes transforma o espectador em objeto. O artista está virando burguês e está fazendo com os mesmos a mesma coisa que os mesmos sempre fizeram com os outros. Isso é triste. Gostaria de me jogar para o futuro para ver o que sobrará desta época taõ criadora e caótica. A juventude ainda existencial, procurando através do corpo o sentido para o mundo. Esta juventude eu adoro, através desta atitude naõ passam de artistas! Juventude que naõ tem ideal e nem é romântica. Boa medida que anuncia uma outra concepçaõ de vida. Saõ precursores e é esta a sua importância máxima. Eu adoro esta juventude e tenho-lhe o máximo respeito e amor. O jogo vai começar. Oremos. Beijos para você e para os garotos.




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ID
65306