Lygia Clark

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Enquanto eu penso [Diário 1]

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DiaryDocument Type
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DatilografiaArt Medium
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PortuguêsLanguage
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60's
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Texto sem título que trata da relação entre Hélio Oiticica, Lygia Clark e a luva
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Enquanto eu penso por exemplo em fazer uma almofada com recheio de massa dentro como um ovo, ele realiza uma bacia cheia de lama na qual as pessoas com luvas metem a maõ dentro. Ele sai para fora dele mesmo se ligando com o mundo. Eu introverto e peço ao expectador que faça o mesmo para sentir a sua realidade interior. Isso sempre em todas as fazes. Enquanto o Helio cria um ambiente para o homem entrar dentro eu o faço entrar dentro dele mesmo. É taõ oposta essa minha comunicaçaõ em relaçaõ à dele que seria como uma luva. Ele constroe à parte de fora eu vivo o seu interior.

            Pensei também em outro problema. Antigamente sabia-se que para se fazer uma obra se levava uma vida. Hoje vejo que uma vida é um detalhe somado a outras vidas (obras) e que seria preciso de varias gerações para se expressar um novo estilo ou uma nova comunicaçaõ.... Isso dentro da aparência superficial de que vários estilos nascem e morrem com a maior rapidez! Seria uma espécie de coletivizaçaõ em que a individualidade se perde ou se encontra num todo? A impreçaõ que eu tenho é de que somos já um detalhe deste todo o sem percebermos. Mesmo essa característica exterior de que as coisas mudam com a maior rapidez confirmam o meu pensamento de que tudo que está sendo esboçado naõ passam de pequenos detalhes para uma futura síntese do pensamento humano. Época extraordinária. Naõ há possibilidades de cristalizaçaõ e temos a possibilidade de estarmos sempre vivos na busca de nova proposiçaõ e conseqüentemente de nova maturaçaõ interior....

Seria o princípio da coletivisaçaõ do individuo de que fala Chardin?

Aprendi outras coisas com os canários. Quando os filhotes crescem e eles já estam interessados numa futura cria pois já cruzaram novamente eles se desinteressam absolutamente dos filhotes. Essa percepçaõ me deu a medida de que estou exausta de ser mãe. Fui pae e mãe anos a fio para os meninos pois o pae nunca se interessou por eles até o momento que viraram rapazes. Me recuso agora a continuar essa relaçaõ pois há muito já havia percebido que ela já é uma relaçaõ sem sentido. Agora é a hora da família se desfazer. No ano que vem irei a Europa e talvez passe lá bastante tempo. Eduardo felizmente foi para Paris e espero que volte já com opçaõ para saber o que fazer de sua vida. Beth está ótima pois está no 4 ano de psicologia e fazendo analize também. Álvaro está outra vez com a relação ultra negativa que já nem posso aprovar. Coitado, talvez seja o que tenha mais problemas em relaçaõ a mulher que o próprio Eduardo. Também naõ foi sopa ter uma mãe como tiveram. Peço desculpas mas só pude ser dessa maneira.

As vezes me pergunto o sentido da vida pois a medida que somos elaborados estamos cada vez mais próximos da morte. A decalage que é criada é terrível pois na medida em que crescemos como mulher já naõ temos nem um amante! Depois diante dessa indagaçaõ respondo a mim mesma que o unico sentido é o momento, o instante e o fazer-se dessa maturaçaõ. Sinto hoje a vida feixada como punho. Secreta, intransponivel no seu misterio do “o fazer-se” ao pronto que é o sentido do absoluto. Antigamente eu vivia a vida como um punho feixado no momento do nascer que se ia abrindo como uma flor a medida que íamos encontrando algum sentido nela mesma. Hoje essa consciência do punho fechado é muito mais intensa mas está nele mesmo o mistério do devenir inscrito no presente.

Fiz um novo teste de “Roachar” com Beth. Pensei que ia dar uma droga como os outros dois que me fizeram ha anos atraz. Diz a Beth que foi o melhor resultado obtido por ela deste teste. Deu: integraçaõ de personalidade, feminilidade sem nenhum traço de homocexualidade e ainda deu ótimo indice de afetividade. Naõ deu nenhum traço de esquizofrenia o que eu achava que eu era.

Li ontem um livro de Borges, argentino. Naõ entendi nada a naõ ser um conto chamado o Pele Vermelha.

Vi o filme de Antonioni que detestei. “Blow-Up”. As pessoas acharam maravilhoso. Naõ posso admitir que se engula uma pílula dourada, bela, bem feita, como se fosse mais do que realmente é. Toda a simbologia dele é taõ externa, taõ fraca, taõ ultrapassada que a vida se transforma num bonito jogo pré-concebido perdendo toda a densidade do “o fazer-se” única realidade hoje real como percepçaõ- E ainda dizem ser Antonioni o cineasta da época do cosmos.... Ultra romantico, chorando sempre uma realidade passada, a única coisa que ele consegue realmente exprimir é o seu conceito da vida sem nenhuma universalidade..... Dois filmes eu vi que poderiam transmitir essa realidade atual, nova: “A bou dês soufle” e “Mariembad”. Tambem acho que hoje no cinema como nas artes plásticas acabou o mito do genio. Bunhel é genial mas é de outra época. Goddart e Resnais fizeram filmes importantíssimos mas saõ dessa época em que a soma da percepçaõ de cada um é a síntese de uma nova realidade. Naõ saõ geniais como Bunhel. Fizeram cada um, 1 filme genial. Isso poderia significar que nenhum artista hoje pode sozinho, sendo atual, dar uma medida de uma vizaõ individual da realidade. Tambem aí parece que enganamos na coletivizaçaõ do indivíduo. Época extraordinária. Perde-se e ganha-se numa nova escala de valores e aprende-se a viver na base da permanente mutaçaõ.


ID
65463