Lygia Clark

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Textual

A vivência é tanta e tão dilacerante no “agora” que sinto muita necessidade de tomar notas. [Diário 1]

Tipo de documento
DiárioTipo de documento
Forma de registro
DatilografiaTécnica
Idioma
Data aproximada
1967
Data de produção
20.03.1967
Local (cidade/país)
Autor(a)
Transcrição texto

20 de Março de 1967.

Meu Deus, a vivência é tanta e tão dilacerante no “agora” que sinto muita necessidade de tomar notas. Talvez tomando consciência, eu possa sobreviver. A sensação de morte total misturada com nascimento é tão intensa que o meu corpo, mais uma vez, entre tantas outras vezes, se recusa ao acordar a agradecer o milagre da vida. Vomito. Boca amarga com fel, medo do que está saindo de dentro, reconhecimento da vida....Ah! São abortos da natureza, é o começar da vida, espécie animal e gente... Vi na estrada um menino pequeno que ia andando de costas com uma grande trouxa nas costas. Via somente aquela figura pequena, a trouxa enorme e duas mãozinhas fechadas segurando as extremidades da trouxa. Era um monstro. Eu o reconheci na minha carne, no meu passado sem data da memória... eu vivo esse monstrengo. São as minhas pedras que Mario chamou de Natureza. São abortos. Vem como pensamento o “saco” convite à longa viagem. Isso cheira à morte e também ao recomeço eterno. Me sinto morta, esmagada e apavorada e apavorada. Fui comprar material para fazer a roupa-corpo-roupa. Diz o Mario que são andrógenas... Agora, exatamente que o reconhecimento de meu corpo se faz imperioso, aos gritos, estou só e parece que para sempre. É a defasagem da vida e da existência. Será sempre assim comigo? Porque? Pago caro e usufruo sozinha esse desabrochar magnífico da sensualidade, esse apelo terrível da carne na solidão do estar só. Urge se aprontar pois a morte é a única coisa que não falha. É o grande encontro. Carne flácida, pele ressecada, músculos frouxos, mas alma de garota que espera e esquece as próprias condições no esquecimento do tempo do próprio ser. O nariz que reconhece o cheiro, as mãos que buscam e encontram o objeto, o diálogo do Eu e o Tu na solidão do monólogo proposto. Vi outro dia uma lavadeira que segurava contra o ventre uma grande roupa-trouxa. Me reconheci na barriga trouxa que ela incorporou no próprio ventre...

Seguem como realização as pedras articuladas entre elásticos como hálitos de tempos criando relação do Eu e o Tu entre si. Em que estarei sendo transformada? O que estarei transformando? Mostruário do corpo com cabelos e favos, pêlos, ectoplasmas gelatinosos que deformam, recriando úteros produtivos... As vezes eu me sinto cansada, quero o encosto da estereotipia para parar, quero usufruir o ganho como coisa estável,  mas o precário derruba todas as possibilidades e propõe implacável o milagre da vida. Dói e muito o se sentir milagrosamente jogada como um pião, cuja corda sempre enrolada contra o meu Eu fazendo-o rodopiar perdendo o sentido dos lados, da frente, mal tocando o chão e às vezes a sepultura se impõe como descanso, ventre genial do bicho mundo que tudo engole e transforma no esquecimento. Meu habitat é a água, ou o foi? Já nada sei e por isso mesmo estou sendo salva. Pedi tanto, durante a grande crise, o esquecimento de tudo que havia apreendido e agora, eis-me aqui me debatendo atrás de uma certeza, pausa. Eu sei que tenho que agüentar e por isso mesmo estou botando tudo para fora de mim mesma pois esse é o processo e esse não pode parar.

ID
65466

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