Lygia Clark

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Do Ritual, 1960 - 2 [Diário 2]

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DiaryDocument Type
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DatilografiaArt Medium
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PortuguêsLanguage
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1960
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1960
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mito era o mediador para o rito. Eu ainda naõ sabia que o mito era o “eu” da pessoa e comecei a gritar e a chorar dizendo: “Se fosse na idade media você me poria na fogueira”.

Do ritual – 1960 


Os action paintig tem o ritual do gesto, e a expressividade da obra muitas vezes naõ ultrapassa essa expressividade externa que seria o estimulo. 

Quando isto acontece é que a obra naõ se formula e o resultado naõ passa de uma manifestaçaõ artistica. O resultado naõ deixa lugar áque a expressividade do gesto o substitua. Na arte neo-concreta, há outra especie de revalorizaçaõ do gesto expressivo. O gesto naõ é o gesto do artista quando cria, mas sim é o proprio diálogo da obra com o espectador. O que este gesto acrescenta é de grande importância pois ele faz com que o homem comum se aperceba imediatamente da vivência interior. A obra cria um exercício para desenvolver esse sentido expressivo dentro dele. Seria uma espécie de oraçaõ somada a participaçaõ integral dele um um amor ritualistico.

O espectador já naõ se projeta e se identificando com a expressividade de uma obra. Ele vive a obra e vivendo a natureza dela ele vive ele proprio. Exêriência primeira. Somos novos primitivos de uma nova era e recomeçãmos a viver o ritual, o gesto expressivo dentro de um conceito.

Poloc teve uma atitude válida tirando a superficie da posiçaõ tradicional estendendo-a no chaõ e o seu corpo participava do espaço total da superficie pintada por ele. Poloc vive o espaço com o próprio corpo e é atravez deste corpo a corpo é que ele se expressa. Exatamente o oposto de um Poloc é Mathieu que, alem de conservar a supéficie na sua posiçaõ tradicional ainda usa o espaço externo como ligaçaõ entre ele e aquilo que ele quer expressar, sendo portanto um ritual externo – só tem funçaõ na medida em que é necessário para alcançar um pedaço desta superfície. Se a superfície é pequena o artista pode dominá-la como uma totalidade, o informal se sustenta, ao contrario de uma grande superfície o artista participa dela com todo o seu corpo. Pela sua propria posiçaõ o artista se sente livre e tem consciência de todos os seus lados que já naõ existem, uma totalidade viva sem dimensaõ.

Burri foge aparentemente do conceito tradicional em relaaõ a superfície mas naõ encontra equivalencia de um novo conceito. Ele trabalha a superfície como um objeto. O conceito naõ passa de uma expressaõ imediata.

Spanudis assim se expressava em relaçaõ aos “bichos”: “Eles fundem as duas tendencias da arte das formas e das formações”: fusaõ do ritual somado à estrutura (lado formal construído) sendo que esta estrutura trás dentro dela as possibilidades de se desenvolver vários tempos de um espaço (arte das formações).

Poloc tem o seu ritual para se expressar ao passo que, os “bichos” oferecem ao espectador este ritual como experiência primeira. Na superfície de Poloc ainda há a projeçaõ de dentro para fora, portanto a convençaõ do plano ainda subsiste na mensagem ao espectador, retomando o seu lugar abitual. 

Eu destruo o plano fixo que tem avesso e o reconstruo solto no espaço sem suporte e avesso, mostrando a precariedade do conceito do plano fixo.

Quando uma pessoa brinca com os “bichos” começa a aventura de se desligar deste conceito antigo aprendisado que é o desligamento com tudo que é fixo e morto 

Ele brinca com a vida, ele se identifica com ela, se sentindo na sua totalidade, participando de um momento único, total.

Eu naõ tenho prazer em brincar com os “bichos”, o meu prazer é o de ver os outros brincarem com eles.

Tenho notado em certos Tachistas que a problemática se resume em expressar ora a fundo ora a figura. Teimam em figurar o mundo exterior ainda vazio mas identífivável. Isto quando há ausencia da figura. Outras vezes se dá o inverso, eles figuram o objeto.A relaçaõ dele; artista com o mundo naõ estará sendo checada? Este suporte ainda usado por eles é que me dá a impressaõ de uma arte já ultrapassada e recondicionada à nossa época.

Saõ saudosistas de uma linguagem decadente. Hoje o problema já é outro. Antes o suporte seria sempre a realidade, naturezas mortas, pessoas, paisagens etc.

Aos poucos foi sendo suprida toda a relaçaõ com a realidade exterior e o problema caiu hoje num corpo a corpo de artista consigo próprio como se defrontasse num espelho e tivesse que dar sentido a esse vazio. O homem pela primeira vez tem que criar como Deus, a sua imagem e semelhança...

É um corpo a corpo existencial. Hoje o artista naõ pode ser mais somente intuitivo. A medida que ele cria ele tem que forçosamente ser recriado pela obra.

É a época dos que conseguiram condicionar um novo conceito: a coisa viva.

O artista hoje para dizer alguma coisa válida tem que criar uma estrutura. (Seria assim antes?) Uma estrutura viva dentro do espaço real, naõ mais virtual - o plano morreu. 

Enquanto o plano existia era usado virtualmente como um suporte. O plano ainda era o mundo. O artista ainda transferia para ele o sentido da poética que estava dentro dele. Hoje o plano é a sua imagem, naõ mais o mundo. O artista se projeta no plano mas essa projeçaõ é voltada para ele mesmo (como num espelho). Aí é que se dá o corpo a corpo. O artista de hoje criando a sua imagem e semelhança transcende a essa imagem mesmo.

Outra posiçaõ é dos tachistas que, naõ conseguindo transcender a eles mesmo (imagem) caem no antigo conceito de expressar ainda o mundo, no seu profundo sentido visceral identificavel com a matéria da própria natureza.

Quando a obra de arte é completa na sua expressaõ e força, revelando toda a dramaticidade que a gerou, - o artista jogou com toda a sua personalidade, lado feminino e lado masculino, como uma totalidade. Essas polaridades seriam como pontas de uma mesma vara, seriam mais aguçadas no artista, que, no momento da criaaõ da obra de arte, viveria como uma totalidade, essas duas forças contraditórias. Seria essa a forma primitiva do homem antes de expulso do paraíso?

Ou haveria mesmo as duas pessoas que se completavam de tal forma que naõ teriam consciência desta diferença? 

Dizem que Deus deu o livre arbítrio ao homem mas ao meu ver, quando ele deu ele estabeleceu automàticamente as diferenças as polaridades, o errado e o certo. Quando se estabelece um lado, automaticamente se estabelece o outro. Neste caso foi Deus que criou a noçaõ do bem e do mal.

Daí partiu a noçaõ do tempo mecanico o homem começou a ter noçaõ do principio e do fim. O problema existencial teve inicio.

Neste momento, houve a parada no tempo pois o tempo já havia começado a correr. No tempo absoluto, as coisas já existiam e é por isto que se podem fazer previsões.

Naõ sou fatalista, pois “o que fazemos hoje, naõ é porque já está concebido no tempo absoluto, mas sim, está neste mesmo tempo absoluto, porque o fazemos hoje”. No fundo o que fazemos e o que está dentro do tempo absoluto é a mesma coisa, mas é preciso naõ confundir as coisas, porque, se naõ temos essa noçaõ como uma unidade embora separada, cairemos no fatalismo invertendo o livre arbítrio e estaremos perdidos dentro do tempo absoluto.

Quando dizem que foi Deus que deu o livre arbítrio ao homem, naõ terá sido o homem dentro do seu lado Deus que o decobriu? Aí ele estebeleceu o princípio o fim o bem o mal.

A diferença entre ele e a fêmea: perdendo com isto o estado de graça inicial, era também o começo da procura de um Deus fora dele mesmo e era o inicio do problema existencial e a perda do estado de graça, do equilibrio perfeito.

Teria o homem, à medida que se foi transformando num ser vertical, criando ou captando a transcendência do cosmos e com isto se modificando radicalmente estabelecendo nessa procura se distanciando cada vez mais dos outros animais, procurando Deus como origem principio e fim?

A impressaõ que eu tenho, é que esse estado ele já o havia conhecido pois como se pode procurar uma coisa com nostalgia sem te-la conhecido antes?

Ou seria uma saudade cosmológica trazida paralelamente com o desenvolvimento dele?

Uma coisa eu sei : somos angustiados no sentido existencial, origem principio e fim. A morte é que nos dá consciência deste problema, ou o homem antes seria imortal (naõ tendo consciencia da morte) depois se viu nesta contingencia e por isto chora essa perda, ou a consciencia do tempo absoluto que ele adquiriu lhe deu esta saudade cosmologica e o faz realizá-la através da obra de arte.

Seria no momento do nascimento o sopro (alma) é o próprio cosmos que entra no corpo e daí começa todo o problema?

Quando eu descobri o tempo metafísico através dà arte e o que foi sentido depois disso na própria vida, eu já naõ temi mais a morte como idéia abstrata, mas somente com o corpo e num sentido mais realista e naõ taõ metafísico. O problema existencial se tornou como problemática uma coisa menos intensa e o tempo mecanico deixou de me incomodar.

Naõ sinto como uma abdicaçaõ mas sim como uma consciencia adquirida, menos racional porem mais absoluta. 

Uma tranquilidade me envolveu. Taõ grande que sinto que já posso morrer.


Dizem que a parte criadora do artista é sua parte feminina. Mas Kierkegard fala na alma vivrl que quase nenhuma mulher possui que é aquela que pode dialogar diretamente com Deus. A mulher para realizar alguma obra válida tem que ter esta parte viril, (síntese e abstraçaõ). Estaria aí a sua capacidade de transcendência. “As manifestações artísticas” seriam um só lado destes dois elementos. A intuiçaõ é uma característica feminina; o sentido da abstraçaõ, uma tendência,uma tendência masculina. Nas manifestações artísticas sente-se uma espécie de formações como amálgamas, um começo antes da forma. Seria ainda um período em que o homem naõ poude fazer emergir de dentro dele uma forma construida (da mesma maneira, no período em que naõ havia no mundo uma unidade (vida como um todo expressivo dentro dos cosmos.) 

Os informais têm muito da terra (mãe) ebuliçaõ, perpétua transformaçaõ. Falha aí o seu lado viril pois naõ há a forma que surge do caos, naõ há a semente que a fecunda naõ há portanto a dialogaçaõ com Deus, que é o elemento que a transcende. Entra aí o conceito do plano, da superfície que é uma construçaõ abstrata criada pelo homem. A mulher dá a perpetuidade, o homem a transcendência. A mulher é a natureza o homem o aventureiro que busca ultrapassar essa mesma natureza. A mulher é orgânica o homem metafísico. A mulher é a estática, o homem a dinâmica. A mulher é a água a sua origem para transcendê-la. No amor, de uma maneira geral é nesta passividade que constitue toda uma unificaçaõ de duas pessoas em uma só. No momento em que ela se permite, ela se retira e deixa que o homem busque atravéz dela. Quando ela se retira, ela se permite que ele atinja a mais do que ela: ele toca a sua origem através deste momento, ela dialoga com Deus através dele. (Kierkiegard). Na obra de arte, deve haver um processo equivalente, só que de caráter interior total, integral.

O artista se debruça sobre ele mesmo, mergulha no seu lago feminino busca a sua origem, dialoga com Deus e capta a sua transcendência. Para realizar no plano objetivo e concretíza-la ele usa de uma expressaõ criada por ele mesmo que é a superfície na pintura – as formas na escultura – e no momento em que esta superfície continua a ter avesso é que ele ainda usa o conceito filosófico do plano para que esta realidade interior se apoiando se revele.

Se a intuiçaõ é uma característica feminina e é o que faz natureza (a intuiçaõ é a forma,çaõ e naõ está nela a força que a pode revelar). Deve ser o poder de abstraçaõ que há no homem, o seu lado metafísico, que é capaz de dar forma abstrata construída e naõ naturalística a uma idéia.). 1960


Sei que parte destes textos saõ fracos, mas nunca tive cultura e foi desta maneira que acabei escrevendo outros textos em 1964 que saõ precisos e naõ tem nenhuma conotaçaõ cosmologica. Com o tempo nada sobrou do misticismo.

ID
65336

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