Lygia Clark

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Sonho que estou tirando uma substância de dentro da minha boca... [Diário 1]

documentType
DiaryDocument Type
artMedium
DatilografiaArt Medium
inLanguage
PortuguêsLanguage
dateBegin
07.09.1967
location
author
transcription

7 de Setembro de 1967


Na semana passada tive um sonho, que é uma constante na minha vida- Sonho que estou tirando uma substância de dentro da minha boca, parecendo um chiclets imenso, sem fim. Fico sempre angustiadíssima e essa matéria nunca acaba de sair de dentro de minha boca. Desta vez porém, o sonho teve uma segunda parte. Depois de angustiadíssima puxar pra fora uma enorme quantidade desta substância, eu percebi que, essa substância havia ficado consistente como um enorme tubo de borracha e que o mesmo, fazia parte integrante do meu organismo. Diante desta percepção, começo a introjectar esse tubo e, consigo engoli-lo totalmente, espantada como o poderia ter conseguido. Acordei e pensei numa serie de coisas. A percepção de que sou realmente uma pessoa de muita voracidade e pessoas na vida, foi de uma agudeza extraordinária. Fiquei muito angustiado pois percebi que, antes desse sonho, nos outros em que eu só perdia essa substância e vivia naturalmente isso como perda, a voracidade na vida me era despercebida e era uma maneira de compensar essa perda. No momento em que consegui integrar essa substancia dentro de mim, eu começo a perceber essa mesma voracidade de que sou possuída! Essa decaláge é que me angustia embora saiba perfeitamente ser esse processo inconsciente o primeiro passo, para que essa integração se dê na vida, perdendo aí a voracidade. Só tive esse sonho por motivos absolutamente ligados a minha ultima fase. Primeiro os plásticos sensoriais que eu chamava de “nostalgia do corpo” e depois a “roupa-corpo-roupa” em que o corpo já era em si mesmo a expressão. Em seguida fiz os capacetes sensoriais em que as pessoas se sentem em um mundo totalmente mágico como o L.S.D. Depois pensei no capacete sensorial muito-viceral, que seria a vivência do sonho e nele havia uma boca falsa  de onde a pessoa puxava para fora uma substância, que nunca acabava de sair. Depois que pensei em executar esse último, que alias sabia ser menos importante que os outros já executados, foi que me veio esse último sonho. Deus meu, o que falta ainda para me elaborar? Me lembrei da gosma que tiram de dentro da boca no nascimento. Lembrei-me ainda que, quando criança, eu sofri tifo 2 vezes e que enfiavam dentro da minha garganta um pau comprido para fazerem a limpeza do pus. Sonhei também que havia uma criancinha que teria sido molestada sexualmente por uma pessoa que seria eu, a mãe. O que me veio na cabeça era o fato da criancinha não ter sofrido nada que atingisse seriamente a sua integridade física. Pensei seriamente sobre esse sonho e me lembrei da minha mãe Italiana, mãe de leite onde passei alguns meses de vida na sua casa. O que me teria acontecido nessa época? Sonhei também que a minha neta, que tem o meu nome, havia virado um ratinho, que corria corria e de repente virava ela outra vez deitada na cama. Evidentemente era eu a garota. Estou mortalmente angustiada por problemas objetivos mas talvez esteja muito mobilizada também pois  devo está começando um outro processo de crescimento interior. Tenho tido vivências importantes. Pensei muito nos Hippies como talvez a primeira geraçaõ de jovens que naõ precisaraõ de fazer qualquer proposiçaõ de arte para se expressarem. Acho que eles estaõ tentando essa comunicação através da própria vida. É belo! Tendo sido fundido sujeito-objeto na comunicação da arte (a imanência substituindo a transcendência) entrando o ato como única coisa viva, é lógico que as forma de expressar qualquer comunicação seja pela arte, religiaõ ou espaço tempo que ainda possam sobreviver é a imanência de iluminuras na própria vida. Já naõ há o devenir. Tudo se passa no “agora”. Seria o próprio nirvana o que eles se propõem? Esses intelectuais que se dizem os seus líderes são aderentes pois ainda precisam de uma formulação como nova ideologia para explica-los ou desculpa-los. Os verdadeiros Hippies não são os que fazem teorias ou tiveram experiências Zen. Eles vivem simplesmente o momento. Quando fiz o caminhando em 1963, já tinha consciência do problema do ato e da imanência. Me perguntava se qualquer gesto na vida, poderia adquirir magia como era a experiência do caminhando. Os Hippies já responderam que sim. Substituíram a aliança por uma faixa e o casal se enlaça na mesma, num ritual novo, mágico e tribal. Seria inútil tentar me identificar com eles. Mesmo que minha expressão seja infra-sensorial e que eu os entenda de há muito pois a minha dedicatória no meu livro de Londres já era para esses jovens que sempre considerei por excelência existenciais, sou ainda aquela que precisa de fazer uma série de proposições vivenciais para o outro. Na vida há muito

Na vida, outro dia, senti coisas estranhíssimas e nem sei bem como tive essa intuição. Na praia da Urca vi coqueiros com troncos tortos fazendo cavidades para dentro ou para fora do seu eixo. Me colocava reclinada dentro dessas cavidades e passei a me sentir o próprio tronco. Depois, comecei a andar em volta de uma estátua olhando as pregas da túnica com a mão resvalando na mesmas. De repente, eu era a prega. Nunca experimentei a “roupa-corpo-roupa” nem os capacetes. Não tenho nem desejo ou curiosidade de faze-lo. Só me interessa saber a vivência da pessoa que os vestem e são por vezes belíssimas.... Já me perguntaram se estava me preparando para a morte, já se sentiram drogados como quem toma maconha ou o L.S.D e já se sentiram espionados por milhões de olhos (no capacete preto, que introverte e divide o interior) e também, já saíram de dentro deste capacete gente apavorada, vomitando pela rua.


Hoje estou profundamente triste. Meu filho mais velho me disse coisas difíceis de esquecer. Coitados de nós dois......


O meu filho mais moço se recusa a ir para a França aproveitando uma bolsa que ganhou competindo com gente boa e tudo....

Coitado, está completamente sem opção.


A única coisa boa que aconteceu, foi que a canária está botando ovos. Daqui há pouco teremos filhotinhos para tratar e os outros estão indo pelo mesmo caminho.

(Não sei o lugar deste texto)

ID
65464