Lygia Clark

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A Mãe [Diário 1]

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A Mãe

Quando o caçula nasceu, a Mãe sentiu toda a magia de uma eclipse. O pai ia viajar e a Mãe, com o filho pequeno nos braços, recuou apavorada sentindo todo o perigo e a magia da lua que cobriu o sol. O caçula berrava noite e dia quando a loucura acabou de baixar sobre o corpo e a alma da Mãe. Acabou sendo posto para fora do quarto, no corredor, mais tarde na sala e em seguida na entrada do apartamento. Enquanto o caçula berrava noite e dia abandonado, colecionando rejeição pelo resto da vida, a mãe entrava num processo intenso de sonhos, alucinações que a mudaria também pelo resto da sua existência cujo processo nunca mais a deixaria, sempre num equilíbrio entre a loucura que era sua e a realidade que ela estava sempre na iminência de perder, saindo sempre quando a supunham já estraçalhada vencida, caindo de pé numa magia fabulosa de malabarismos cada vez mais completa como ser humano, mulher e cada vez mais velha, com o lado menina cada dia mais acentuado. Teve alucinações terríveis, escutava vozes todo o seu corpo tremia sem controle, era o conhecimento do que mais tarde saberia ser o vago-simpático que nunca mais a deixou sem noticias. O mesmo a invadiu sua vida inteira, a cama tremendo debaixo do seu corpo convulsionado, eletrizado por conflitos de tal fúria que, quando passava a crise, a corpo banhado de suor frio, a cabeça rodando junto ao teto de seu quarto que sempre se punha em movimento mostrando a Mãe o seu interior desagregado e perdido. Medo de animal, medo de água, que somente anos depois dessa crise ela saberia um dia por acaso o começo desse medo no seu inconsciente infantil. Quando era muito garota, o médico da família aconselhava carrega-la ainda adormecida nos braços do pai e ser jogada dentro de uma banheira cheia de agua gelada nas noites de inverno, isso para acalmar os seus nervos pois diziam-na muito instável. A agua para a Mãe, nessa crise, era um elemento de tal terror que ela pensava no cão danado, se recusando a toca-la com as pontas dos dedos. Escutava dialogo na sala e fazia fantasia: eram os pais que havia chamado mas que se recusaram a vir. Escutava também o ranger do balanço do sofá da varanda como se alguém lá estivesse assentada presença tão desejada e a ausência como realidade se impondo.

Um abismo se abriu em fúria dentro dela e ela escorregou até o fundo. Perdeu toda a conotação com a realidade. Pensava em matar o marido que numa coragem incrível a fazia dormir com uma faca na cabeceira da cama para mostrar-lhe que era fantasia o seu rancor o seu ódio dirigido ao acaso da memória do passado sobre o mesmo. Em pesadelos acordava gritando como se alguém estivesse lhe prendendo os braços e constatava que era ela mesma que com uma mão puxava o outro braço.[...] a faça. Os limites que a vida lhe impusera se romperam e ela começou a sentir cheiros, sons, a libido adormecida derramava toda para fora, ela que fora, por problema, uma mulher fria nas relações com o marido. Sentia que estava no fundo de um poço e queria sair de qualquer maneira. Lhe negaram um psicanalista e ninguém acreditava nisso na família. Isso foi em 1947. Ela estava com 27 anos, era burguesa, estava casada com um engenheiro muito chato, mas grande nas horas certas. Sentia uma dor no alto da cabeça que ia até a arcada dentro da boca. Todos os seus músculos se descontrolaram e ela tinha que se dar as mãos para que os outros não percebessem os tremores. Via o mundo com uma lucidez extrema. Tudo era vidro e transparente lucidez da loucura. Sentia uma dor enorme dentro do coração como se dentro do mesmo houvesse aberto uma ferida mortal. O que a salvou foi o sono. Dormia 12 horas por noite e passava o dia se debatendo contra a loucura e a morte. Pensava em se matar chorando muito e jurava que se saísse disso nunca mais teria outra crise dessa natureza tão profunda e terrível. As obsessões a absorviam totalmente. Agressividade, ódio mortal do marido, a faca, o fio do corte da mesma, o corpo que se abria em convulsões o inconsciente que a cobria como o mar, estava de pernas para o ar se parindo para o bem ou para o pior. Um nó na garganta, o bolo histérico, a corrida de carro o marido fingindo atirar o carro contra uma arvore, o som do bolo que se arrebentando lhe descia pela garganta, o choro, a realidade o mundo que continuava apesar de a vida que escorria ao redor dela, ela vendo de fora na impossibilidade de ser integrada no mesmo. Depois, a saída para o mundo. a busca de ser ela mesma. Toda uma reviravolta na sua vida. Trabalhando na pintura no desenho, fazendo testes psicológicos que a apontavam como tão louca que o milagre era ainda ela poder se exprimir....

O medo do medo era a fantasia que fazia na crise. Medo de animal, inconsciente, aterrorizador, medo do medo nada podia explica-lo e dar-lhe uma conotação com a realidade.

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65586