Lygia Clark

Acervo

Textual

Só agora tenho necessidade de tomar notas [Diário 2]

Tipo de documento
DiárioTipo de documento
Forma de registro
DatilografiaTécnica
Idioma
Data aproximada
1965
Data de produção
10.06.1965
Linha do Tempo
1
Local (cidade/país)
Descrição
Trecho do Diário de Lygia em que descreve ideias e produções realizadas no período.
Autor(a)
Transcrição texto

Já estamos no dia 10 de Junho e só agora tenho necessidade de tomar notas sobre o que anda saindo de dentro de mim. Fiz uma estrutura de elástico e procurava articular com a mesma objetos. Comprei um largo elástico preto e o costurei como uma fita de Moebius. Cobri com ele uma enorme pedra branca transformando-a em enorme ovo. Era o começo do que viria depois. Tirei este mesmo elástico e fiz com ele uma estrutura fechada recheada de pedras. Arte para cegos pois só o tacto comunica alguma coisa quando é tocada pelo espectador e no momento de articular estas pedras escuta-se um estertor que é o frotar de uma pedra contra as outras. Mais parece uma mortalha de tal poder expressivo e brucharia. Mortalha ou Ovo? Ambas as coisas que se expressam dilaceralmente opostas com grande polaridade dramática. Depois fiz um Bicho de Borracha rosa de fazer cinta de mulher e comprei uma traquéia quando acionada perto do ouvido da a medida da respiraçaõ do corpo e descobre-se o próprio pulmaõ vivo. Não se esquece taõ cedo pois toma-se consciência do ritmo do corpo. Essa traquéia chama-se : respire comigo.

Adaptei também esta traquéia no tal bicho de borracha que é enchido com a boca pelo ar. Temos uma estrutura mole macia como vísceras. No momento de enchê-lo escuta-se um barulho insólito. Fiz planos para realizar almofadas recheadas com terra pedra bola de gude, etc. Sempre fechadas e sentidas só pelo tacto. Sofro de artrose nas maõs. Meu tratamento é mergulhá-las dentro de espermacete derretido e colocá-las depois dentro de um saco plástico como um forno para conservar o calor. Um dia me vi aproveitando um destes sacos plásticos e enchendo-o de ar coloquei por fora num dos seus ângulos uma pedrinha. Pega-se com as duas maõs e apertando bem devagar o saco a pedra sai e entra dentro da borda do saco. A sensaçaõ nas maõs é deliciosa. Me fez sentir o meu corpo através das maõs no saco de plástico. Depois disto fiquei muito mais erótica. A sensaçaõ é da maciez das cavidades do corpo. Desta idéia me vieram outras em que enchi sacos com ar e pedras dentro ou água no interior com bolas de gude e pedras. É o apalpar que tem sentido e continuo a achar que é arte para cegos. Naõ é na verdade mais arte mas sim uma simples proposiçaõ para sentir o corpo. Antes disso nasceu o Diálogo. Consiste ele em uma fita de Moebius de elástico que envolve as maõs de dois parceiros. Muda-se a posiçaõ das maõs e elas aparecem como uma escultura pois se transformam de uma maneira completamente insólita. Nasceu da seguinte maneira. Já estava com o problema dos elásticos como envoltórios de pedras etc. Helio Oiticica vindo no meu atelier envolveu as suas maõs dentro da faixa e disse:- Olha a cor que beleza! Quando olhei senti somente a estrutura das próprias maõs que haviam se transformado completamente. Fiz a experiência com as minhas maõs e as deles. Começou o que chamei de diálogo. Todas estas coisas naõ passam de simples proposições. Naõ é obra de arte e é o momento do ato do. o sentir que é importante, nada mais. Acho que tem ligaçaõ com o breviário para o corpo que escrevi quando minha experiência com o Norman. Na impossibilidade de haver uma comunicaçaõ pois naõ falávamos a mesma língua senti toda a sabedoria do corpo que se expressava com grande força- Estou redescobrindo a palavra “Secreta”- Lendo o Kafka: O Castelo vejo que maturidade tem ele neste livro, maturidade muito maior do que na Metamorfose pois o processo usado por ele é inverso. Que relaçaõ teria O castelo com o que faço atualmente? Nenhuma pois o Castelo é a transcendência total ao passo que nas minhas atuais coisas o que comunica é a imanência. Mas e a expressaõ secreta que descobri através dele e que tanta importância teve para mim? O corpo seria esta coisa secreta? Ou a maneira de sentir o corpo é que tem esta característica? Ando taõ deprimida por falta de dinheiro, de amor, de realizaçaõ que quando acordo o corpo está sofrendo a perda e quando vou dormir a perda é total pois naõ faço nada. E o Medalla, que naõ está na idade pre-menopausa e talvés nem tenha esta falta de dinheiro e ainda é homem, que me escreve dizendo que saiu de um grande período de depressaõ? Ah, somos solitários seres deprimidos desesperados e contraditórios. Como amo a vida e a descoberta do corpo taõ tarde me trás o sentido dessa defasagem entre o que sinto e sou e o que poderia ter sido....Vivemos na nostalgia de tudo que foi perdido e dentro do nosso tempo de vida as coisas correm para a frente a idade chegando e o corpo.sofrendo a pedir um diálogo a ânsia de formar um verdadeiro “couple” e a nossa incapacidade de realizar ou de aceitar estas contradições. Solidaõ do ser realizado e a solidaõ do corpo irrealizado de outra maneira.

A quem darei esta eroticidade surgida nas profundezas do meu corpo? Jogá-la fora.... usufrui-la sozinha, esquecê-la no passado quando ela se faz presente a cada instante? Gastá-la no trabalho, nos músculos suados, nos dedos artrozados, nas juntas embrutecidas pelo descanso de um exercício do fazer amor? Descrevê-la aí ainda é o melhor processo pois o que se escreve, sofre a gastura da consciência. Quantas vidas vivi, Senhor para sentir tantas modalidades de ser? Quantos seres sou eu para buscar sempre no outro ser que me habita a realidade das contradições? Quantas afirmações fui capaz de criar e quantas negações brotaram do que afirmei? Quantas alegrias e dores meu corpo se abrindo como uma gigantesca couve-flor ofereceu ao outro ser que está secreto dentro do meu eu? Cada pessoa é essa coisa secreta, densa, impermeável, contraditória, um gigantesco Ovo, mortalha da própria existência, vida e morte nela mesma. Dentro da minha barriga mora um pássaro, dentro do meu peito, um leaõ. Este passeia pra lá e pra cá incessantemente numa procura de diálogo consigo mesmo. A ave grasna, esperneia, e é sacrificada, degolada todos os dias para dar pasto a esta fera. Ela nasce todos os dias e morre ao entardecer. O Ovo continua a envolvê-la como mortalha mas já é o começo do outro pássaro que nasce imediatamente após a morte. Nem chega a haver intervalo. É o festim da vida e da morte entrelaçados. Um dia quando o meu corpo morrer a ave será liberta e o leão vai procurar outra caverna, um peito, para sua moradia. O leão que habita o outro, as vezes é a fêmea do nosso e eles se entendem sem sabermos.

            A minha fantasia nesta fase é de que o mundo é um enorme Bicho que pacientemente se deixa molestar permanentemente pelo homem que constrói em cima dele pequenas arquiteturas. Às vezes ele boceja de tédio e abre ligeiramente sua pernas que estão imóveis. Entaõ se abre uma imensa cratera que engole tudo que está pelas proximidades. Abrem-se novos rios que naõ passam de suco do mijo do monstro e que chamamos de Rios. Fecham-se vales que não passam de reentrâncias do corpo do monstro e montanhas caem por cima das florestas que são os pêlos do Bicho. Como se chama este Bicho? Mundo. 

            Somos filhotes deste monstro que nos engole qundo morremos. Somos incorporados por ele para dar vida a um pequeno detalhe do seu corpo. Naõ passamos de células de um todo.

            Tenho nostalgia deste bicho gigantesco como matriz geradora de vidas e mortes. Origem, princípio e fim. Vejo os seus cabelos, florestas gigantescas tosadas pelo homem que naõ sabe da existência deste todo. Vejo os excrementos deste monstro, calcinados e duros, pedras espalhadas no ribeirinho de mijo que dele sai. Sinto os tufos do sexo do monstro a cada passo na curva de cada estrada. Com quem ele copula? Por certo com ele próprio pois vários sexos ele deve ter. Como dará ele a luz? Por intermédio dos outros que dele já saíram.


            O mundo não passa de um grande monstro muito paciente que deixa o homem construir desde uma casa até uma cidade por cima do seu ventre. Quando ele fica impaciente, abre uma perna ou faz um pequeno bocejo, engole cidades, aplaina montanhas, abre novos rios, implacável. Este é o meu tema. Meu mote contínuo. Nada mais sei e se for me perguntado nada poderei revelar. É a vivência e nada mais.

ID
65304

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