Lygia Clark

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Textual

Tanta coisa aconteceu antes da minha vinda a Europa [Diário 1]

Tipo de documento
DiárioTipo de documento
Forma de registro
DatilografiaTécnica
Idioma
Data de produção
1968
Linha do Tempo
1
Local (cidade/país)
Autor(a)
Transcrição texto


Tanta coisa aconteceu antes da minha vinda a Europa e eu nem tive tempo e também coragem de escrever. Tive que realizar uma grande sala para a bienal de Veneza contendo 150 obras pois as de Londres eu sabia que naõ estavam todas em bom estado. Tambem, como tinha projeto de, aproveitando a Bienal, o negocio com o Givaudan era a hora delevar bastante trabalhos para fazer exposições e permanecer por aqui. Já estava sentindo que nos meus seios qualquer coisa andava errada. Depois do conselho de um grande especialista procurei o Pitanguy para abrir os peitos e aproveitar para tirar a minha grande cicatriz da barriga que era um verdadeiro escorpiaõ. Meu signo. Trabalhando numa enorme equipe para realizar todos os trabalhos e ainda o grande labirinto: “a casa é o corpo”, marquei a operaçaõ. Durante a mesma, meu pulmaõ pifou e ainda desacordada escutei gente que gritava: “D. Lygia, respire fundo!” Tentava desesperada respirar e sentia que naõ saíia ar e nem entrava no meu pulmaõ. Queria comunicar que havia escutado mas naõ saía nenhum som da minha boca...Me senti morrer na medida em que fui desacordando! Foi terrivelmente brutal pois o que aconteceu foi o encontro da realidade com meu sonho tipico: Sempre emparedada num tunel e sabendo-me viva estava fora de qualquer comunicaçaõ pois ninguem sabia que alí estava! Foi um trauma terrivel. No dia seguinte á anestesia, tive um sonho terrivel tambem pois via numa especie de mandala no teto uma serie de corpos de crisncinhas deitadas com a cabeça para dentro do circulo – Pensei, escutando uma vez que dizia: “Sonia Maria etc:-“ Vou acordar pois isso eu naõ aguentarei ver. Outra vez me disse:- É preciso ver e viver isso para eu me libertar de uma vez. Nesse momento apareceu no centro da mandala uma cabeça de um homem jovem que reconheci no sonho, de bigodinho, e começou uma enorme surubada com as crianças e eu assistindo, tive grandes orgasmos, dormindo. Quando acordei naõ sabia quem era o homem mas sabia que eu havia sido deflorada quando menina e naõ sabia onde, nem quando... Já há muito o desconfiava dado aos grandes problemas que tinha tido durante toda minha juventude com o penis. Depois da operaçaõ tive grande crise ao voltar para casa pois tive uma noite branca e fiquei taõ angustiada que pensei em ficar louca.

Estava ultra traumatizada com a operaçaõ, o acidente provindo da mesma (quando acordei da anestesia tinha um buraco no meio do peito todo rodeado de preto e roxo passando para o amarelo). Todos os canários do Álvaro começaram a cantar e eu que naõ podia fazer movimentos com os braços, chorando carreguei 24 gaiolas na cabeça para bota-los na cozinha. Resultado disso é que num peito os pontos custaram a cicatrizar e fiquei um mês indo dia sim dia naõ fazer curativos no hospital. Também ajudava a mecher nos bichos pois ninguém sabia arma-los certo. Andava quase de quatro pois a barriga havia sido operada numa grande cesariana. Só agora em Paris foi que me dei conta que depois de fazer a roupa-corpo roupa: cezariana, eu me fiz fazer uma operaçaõ idêntica a da roupa!! Naõ sei como aguentei esse período pois trabalhava e fazia tudo naõ podia e nem tinha força física para tal. Era veraõ e eu morria de calor, toda enfaixada desde as coxas até o pescoço. Tinha grandes crises de choro, distúrbio do vago simpatico e pensava naõ agüentar nem um dia depois do outro. Mas agüentei e vim para a Europa e ainda tive que trabalhar na minha sala durante um mês para monta-la. Trabalhava das 10 da manhã até as 6 da tarde. Ainda andava a pé milhões pois em Veneza, naõ tem taxi e o hotel, tinha 60 degraus para subir e descer, pelo menos 2 vezes por dia. Tive muito labirinto lá e pensava em desmaiar. No brasil antes da viagem tive também estrés: muitas dores na cabeça e nuca a ponto de naõ poder me levantar da cama e chorava de dor...

A sala foi um grande sucesso. Televisionada por todas as televisões presentes. Ainda depois da inauguraçaõ tive que trabalhar na sala mais 15 dias para recuperar os trabalhos que se entregaram pois a participaçaõ foi enorme do publico. Lá tive muitas vezes um despertar durante a noite toda suada, sem saber onde estava e era como no sonho ou na crise da anestesia. Ficava apavorada. Vim em seguida para Paris dando graças a Deus pois começava a odiar terrivelmente o espectador, e imagino a obra sem ele... e estava até com medo de agredi-los, tal era o cansaço mortal que sentia. Tive aqui em paris uma crise pois a bolsa Guggenheim naõ saiu e fiquei doente de desespero... Agora que já estou melhor acontece o pior:- tive noticia ante-ontem de madrugada, do falecimento do meu ex marido, Aluizio...

Tive uma grande crise pensando nos meninos que na realidade já saõ homens e na Beth também. Falei com eles os rapazes pelo telefone e parece que estaõ bem. Estou com uma pelada nervosa na cabeça pois a estafa foi enorme. Do tamanho de 1 franco e outra também do mesmo tamanaho. Quando ha sol, eu me sinto muito bem. Viro cobra e me deito no chaõ armazenando energia para o inverno. Quando o sol desaparece fico muito deprimida e desesperada. Já vi que a minha motivaçaõ aqui é somente vender obras para realizar outras. Quantoa a ter nome e ficar rica naõ tenho nenhum desejo verdadeiro. Se pudesse voltaria correndo para o Rio e ficaria trabalhando lá mesmo desconhecida por aqui. Os rapazes vaõ me mandar dinheiro a semana que vem. Hoje, andando pela rua, já mais tranqüila, pensei de repente: sou viuva. Realmente Aluizio era o pai de meus filhos e era um sugeito muito chato na vida quotidiana mas era grande nas horas em que precisei de sua ajuda. Foi ele que me troxe para a Europa e me sustentou durante 2 anos quando lhe disseram que eu tinha talento. Muito lhe sou grata e ainda por outras coisas graves que ele teve grandeza para perdoar e compreender. Naõ podia imaginar um homem de 2 metros de altura, morto, dentro de um caixaõ ! Cara dura como uma escultura astéca bonitaõ e coitado, taõ nervoso e com tanto medo da morte. Morreu moço: 55 anos no maximo !Aqui em Paris eu lavo, passo, cozinho e arrumo tudo. Me sinto pela primeira vez descansando. Meu encontro com Eduardo foi ótimo e vi que ele está um magnifico homem. Muito me orgulho dos meus filhos. Saõ bonitos, sairam ao pai; inteligentes, sairam a mim e integros. Ainda naõ comecei a trabalhar e nem sei quando o farei. Naõ tenho vontade de ver arte e nem de ver filmes de arte. Tomei fartaõ de tudo que é sensivel e pensa. Animal, pedra humida, cobra que incorpora o sol, natureza, isso é que me interessa. 

ID
65475

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