Lygia Clark

Acervo

Textual

Envelope 8 - versão 2

Tipo de documento
Casos clínicosTipo de documento
Forma de registro
DatilografiaTécnica
Idioma
Data aproximada
18-11-1976 à 24-03-1977
Data de produção
18.11.1976
Local (cidade/país)
Descrição
sexo F 52 anos 12 sessões 2 versões
Autor(a)
Transcrição texto

           Corretora, 52 anos, está fazendo análise com José Ibsen há três anos. Gosta de água, é filha de Iemanjá, tem muito amor pelas plantas.Gosta do cheiro e do contato com a terra, mas não dos bichos, pela sujeira que fazem.A relação com eles é ambígua, com nenhum bicho tem relação privilegiada. O que lhe faz mais medo é a aranha caranguejeira. De castigo em corredor escuro, via as aranhas descerem pela parede. Boa relação com o homem, orgasmo ligado ao clitóris. É casada há 30 anos – só conheceu um homem na vida e até hoje ambos sentem a maior atração sexual um pelo outro. Quer fazer essa relação para se elaborar. É muito tátil e sensorial. Julga-se muito feia – é bonita e está sempre competindo com a imagem da mãe. 

              A lembrança da mãe vem sempre marcada por grande tristeza. Viveu-a como um ídolo, mas também via nela a mulher triste. Quando se operou de apendicite, via a mãe chorar não de preocupação com ela, mas como se estivesse triste por ser obrigada a ficar ao lado da filha e, assim perder um bom programa. Lembra-se de quando era criança sempre entregue a governantas; ou com dizeres tais como “torrada com bacon” e “Geléia de morango” pendurados no peito, para que a compreendessem durante as viagens ao exterior. Nasceu depois de a mãe perder o filho mais velho: ele morreu em março e ela nasceu em abril. Mãe ausente, mãe frágil, morte da avó , muitas lágrimas, muita ausência.

             A mãe se suicidou aos 41 anos, era uma pessoa muito atraente, com muitos amantes. Seus pais se separaram quando tinha dez anos. Viu a mãe preocupada com as abotoaduras do pai e com seu travesseiro, descobriu que isso era o amor global (gesto de amor da mãe). Aos dez anos, seus pais se separam. Conseguiu juntá-los várias vezes. Quando tinha 11 anos, sua mãe tentou pela primeira vez o suicídio. Pai ausente, castigo, ao voltar do colégio encontra uma boa mesa com comidas, gibis, ambiente de festa. Pensou: alguma coisa aconteceu, para me gratificarem tanto – era a tentativa de suicídio da mãe, que tentou duas vezes matar-se, suicidando-se aos 41 anos.

              Viveu mal seu primeiro filho, rompendo a simbiose com o marido. Contou que perdera uma criança antes dele e contou: “Veja como a história se repete”, referindo-se à mãe, que também perdera o primeiro filho.Seu comentário me fez perguntar se não vivera o primeiro filho o irmão que morrera antes de nascer, tendo ela achado que viera ao mundo por descuido dos pais.Tem três filhos: Pedrinho, ML, que tem o mesmo nome que ela –“Descobri um mundo novo”, disse – e LC, que é mais novo.Contou que ao acordar para vir à entrevista, achara o mundo iluminado com cores e achara isso muito bom.

 

1ª sessão

18 de novembro de 1976

               Pedi que pegasse as almofadas leves e achou-as muito agradáveis. Viveu mal as aolmofadas leves-pesadas e pessimamente as pesadas, achando-as nojentas e com cheiro de mofo. Mesmo as almofadas leves tinham esse cheiro. Pedi depois que deitasse e propus passar o colchão de isopor sobre o seu corpo. No|meio da experiência, teve uma grande fobia e se negou a continuá-la. Coloquei o plástico com a pedrinha em sua barriga e comecei uma indução de Sapir. Interrompeu para dizer, muito excitada, que um réptil como uma serpente passara sobre seu corpo, do seio ao ombro (do lado em que eu estava).

               Tentei massagear sua cabeça, tossiu, retirei as mãos. Colocou um dedo na boca, tossiu, tirou-o. Pediu as almofadas leves, dei-as. Apanhava as almofadas do chão, o saco pequeno de plástico, tudo ao mesmo tempo. Parecia pegar uma grande quantidade de objetos sem que nenhum despertasse a sua afetividade ou provocasse uma escolha; objetos vazios de conteúdo, assim como vivera toda a sua infância, ausência de afetividade. Depois de muito mexer e nada sentir, disse que todos os objetos eram bons. Disse-lhe que isso significava que nenhum fora bom, pois para um ser bom o outro precisava ser menos bom.

               Contou que na hora em que acariciava o seu cabelo, lembrou que estava pagando por isso. Disse-lhe que só uma mãe daria isso de graça. Ficou com uma expressão de extrema angústia, pegou o pequeno plpástico e o esmagou, destruindo-o. Comentou depois que nunca conseguira viver sua agressividade na análise e já conseguira expressá-la aqui em apenas uma sessão. Dei-lhe de presente o plástico estragado, para ela lembrar que pode ser agressiva e, ainda assim, receber um presente. 

               Antes, tentara destruir o colchão de|isopor, arranhando-o com as unhas. Teve uma intensa vivência nas pernas, com o colchão. As células ficaram vivas em forma de flores, como radares que se abriam para ouvir o seu corpo, e descobriu, maravilhada, que podia escutar não só com os ouvidos, mas com todo o corpo. Ao sair, olhou-me bem e disse: “É como se eu percebesse sua imagem mais integral”. Respondi: “Você está falando de você mesma, de sua própria imagem”. Durante a sessão, comentou que não gosta de objetos feitos a priori (quer suprir a si própria). 

2º. Sessão

23 de novembro de 1976

               Falou sobre uma inflamação nos ovário e sobre várias outras coisas. Perguntei o que acontecera nesse intervalo de uma semana. Disse que tivera uma sessão incrível com sua psicanalista e depois uma péssima, como dizendo que nada aconteceu. Que em uma manhã sentiu de repente, através de uma raio de luz que entrava em seu quarto, uma coisa suprpreendente, inexplicável, como se fosse uma parada no tempo, como se o tempo passasse a ser redondo; e sentira naquele momento que se conseguisse viver dentro desse novo tempo, a sua vida mudaria completamente de ritmo. 

               Estendeu-se no colchão, tenou relaxar. mas, como da outra vez, abria uma enorme boca, bocejava e tentava outra posição. Tentei tocar seus cabelos e ela fugiu, refugiando-se no outro canto do divã, para que não a tocasse. Pediu as almofadas leves e colocou-as em diversas partes do corpo, pegou o colchão com pé e levou-o por várias partes do corpo, sem parar em nenhuma, e depois começou a se tocar; primeiro com os pés, depois colocou a mão sobre o ventre, como eu o havia feito, tocou nos a seus cabelos, como eu, e a um certo momento, colocou o colchão sobre sua cabeça e cantou. Tentou ainda colocar o dedo na boca, tossiu e cuspiu-o, tentou colocar na boca o saco de plástico, por sugestão minha, tossiu o cuspiu. Com um mão, procurava sentir a textura da parede ao mesmo tempo em que fazia várias outras coisas. Como da outra vez, parecia uma menina cercada por mil brinquedos, mas sem nenhuma afetividade. Isso foi dito e conversado. (Acho que meu trabalho é assim mesmo, como um tratamento de choque em que revelo e elaboro na hora com a pessoa o que está sendo sentido, de uma maneira concreta e pode-se dizer brutal. Talvez por isso não tenham depressão para elaborar, talvez eu a esteja elaborando com eles, em um corpo-a-corpo).

               Dei-lhe sem sentir, meia hora a mais. Disse-me que me todo o processo de hoje sentiu a mão agigantada e o braço também muito grande, e havia qualquer coisa ligada a uma serpente. Lembrei que a serpente aparecera na sessão anterior e comentei que o aumento de tamanho do braço e da mão era sua tentativa de suprir-se, em vez de se deixar maternalizar; era sua parte onipotente. Conhece Winnicott e perguntou se eu achava ter lhe faltado um objeto relacional. Respondi ser essa minha opinião, salientando achar o seu processo bonito e que talvez ela tenha alucinado muito na infância, para suprir toda essa carência. Comovida, confessou na despedida ter sentido algo de novo em seu corpo, uma espécie de erotisação percorrendo-a de alto a baixo, uma sensação nova para ela. Disse ainda ter tossido mais nessa que na sessão anterior. Lembrei que não, dessa vez tossira menos, mas de maneira mais forte. Ela contou ainda que a erotisação sentida lembrava a percepção do radar nas pernas, na sessão anterior, só que dessa vez a experimentara em todo o corpo.

3º. Sessão

2 de dezembro de 1976

               Chegou com atrás e muito excitada, trazendo-me para ler um conto com o qual concorreria a um prêmio literário. Contou, muito comovida, que o personagem feminino era autobiográfico – era ela no sentido ou na falta de sentido corpóreo - e levaria a vida toda sem identificar-se com ele se ele não tivesse feito “alguns exercícios” aqui no consultório.

               Deitou e induzi o Sapir, que de nada adiantou. Pediu as almofadas leves de isopor, as que aceitara melhor na primeira sessão, apesar de também “cheirarem a mofo”. Pegou-as e colocou-as sobre o peito, para depois jogá-las fora de seu alcance e dizer, muito zangada: “Seio vazio”. Pediu o “seio cheio”, o plástico com ar. Pegou-os e disse que ra muito grande. Dei-lhe um cacho de seis pequenos que havia preparado para ela, mandou separá-los e ficou com dois. Começou o processo de tentar colocá-los na boca, tossiu e tirou; conseguia lambê-los, com a língua de fora, mas toda tentativa de colocá-los na boca era seguida de tosse, o que a fazia tirá-los.Sugeri que chupasse o bico, o arremate com elástico; tentou e não gostou. Depois, colocou os dois seios de volta no rosto longamente, até dizer-me muito triste e dizer que sentia nostalgia. Perguntei se era do passado, “cabeça entre os seios”, teve uma expressão muito angustiada, levantou-os e arrebentou-os na hora. A certo momento, colocara os dois seios sobre os seus e dissera: “Estou sem seios”.

               Pediu novamente o seio grande, animou-se, pediu uma tesoura, cortou-o, fez cinco seios|pequenos, amarrou-os com uma flor e me entregou de presente. Fiquei muito comovida e beibjei-lhe a mão. Ela comentou: “Imagine, fiz cinco pequenos balões e é esse o número de meus irmraõs”. “Você está dividindo o seio com os irmãos, o seio arcaico”, respondi. Ela acrescentou: “Lá em casa, nós somos cinco também” (“A história se repete”, disse ela na entrevista).

               Pedi então que se deixasse acariciar por mim, com o grande seio na mão. Massageei-a por todo o corpo, virou-se de bruços e pediu que a acariciasse nas costas. À saída, repetiu que sentira uma erotização no corpo todo e, muito animada, acrescentou: “Imagine que pela primeira vez descobri que tenho uma empregada ruim, e por outro lado tenho três ótimas e nunca havia percebido iss”.

               + Quando colocou os dois pequenos seios sobre os seus, disse com profundo desgosto: “Não sinto mais os meus seios; ai que horror”. Acho que foi a vivência de seu corpo de criança, sem especificidade e relevos. Pela primeira vez, esqueceu-se de pagar. 

4º. Sessão

23 de dezembro de 1976

               Disse que está ótima, que vive o momento presente, “tudo faz sentido”, e está até mesmo com os pés no chão. Contou que dentro em breve fará uma operação, ablação do útero. Deitou-se dizendo que estava muito cansada e com um pouco de dor nos rins. Pedi para passar o colchão sobre o seu corpo e concordou. Comecei a massageá-la doce e longamente até que ficou fóbica de repente, levantou-se e pediu para ir ao banheiro.

               Voltou tonta, com mal-estar em todo o corpo e começou a falar sobre o banheiro da mãe, limpo e todo de mármore branco, triturado, gelado no meio da banheira, e o sangue, o sangue no meio de seu corpo de gelo... Sentia fortes dores nos rins. Pedi para massagear suas costas e enquanto fazia isso, a sua mão guiava as minhas. Começou a respirar mais fortemente, lembrando-me a respiração durante o ato sexual. Começou a queixar-se de muita tonteira e muita dor de cabeça. Sentei perto de sua cabeça, pedi que ela a colocasse nos meus joelhos e comecei a massageá-la longamente. Ela retirou a cabeça, colocando-a sobre meus joelhos, com o rosto para baixo. Depois, recuperou-se e começamos a falar.

               Disse que sentira o sexo através de minha perna, mas não o cheiro, o que a deixou muito confusa. Falamos da criança que se apropria dos órgãos do adulto com seu próprio corpo, tornando-o promíscuo, e da respiração dela, que fora “de fazer amor”, disse ela. Comentei que agora entendera os bocejos dela na sessão – são o choro que nunca chorara, de abandono, e disse que naquele instante ela chorara com todo o corpo, pela boca, pelos pulmões. “E pela buceta”, completou. Depois, falou sobre a palavra pedra, sentira a pedra como objeto relacional, e disse: “Pedra, Pedro, tenho um Pedro marido, um Pedro filho e um Pedro neto”

               Contou que fora ao banheiro e tivera um pouco de sistite, não conseguindo urinar. Depois, pediu que a tocasse nas costas e continuou falando, dizendo que nunca sentira o corpo tão triturado quanto neste momento. Falamos que é preciso uma pessoa estar bem viva para poder sentir-se morta. Na hora em que falamos do choro, os relâmpagos começaram a ser entendidos e ela disse: “Até São Pedro chora ao me ver chorar”. Depois de tudo evacuado e vivido, ela virou as costas para mim e soltou um grito não muito forte, mas bastante significativo, lembrando-me o grito do nascimento ou o grito primal. Falei no buraco de seu corpo como a boca antropofágica carente que tudo devora. 

               Antes, quando passava o colchão sobre seu corpo e virada de bruços, disse que o braço esquerdo era uma serpente enrolada em uma árvore, pronta para o bote. Eu a massageava por trás. Falamos na facada nas costas, a traição que abre a boca antropofágica à vingança, virar a boca que tudo engole, tudo destrói. Quando começou a grande dor de cabeça, o ouvido esquerdo também doía do lado esquerdo, o mesmo em que vivera a serpente. Via a sua mãe muito branca, toda vestida de preto, andando de um lado para o outro, linda. Lembrou-se depois que uma vez a mãe estava ausente, um empregado enlouquecera e elas se esconderam no quarto com pavor do louco, que se armara com uma faca para matá-las. Disse que nunca teve fantasias com seu analista, mas apenas comigo e com uma mulher com quem fizera guestaltoterapia, há dez anos. 

5º. Sessão

12 de janeiro de 1977

               Ao chegar, após um intervalo de 15 dias, pedi que quitasse o mês e ficamos em desacordo: disse-lhe que o seu pagamento era mensal, ela respondeu que era de 15 em 15 dias. Estranhei, pois os outros pagam por sessão ou por mês. Depois, disse-lhe que se chegasse só às duas e meia, não poderia dar-lhe toda a hora, pois a outra cliente chega às três e meia e assim elas se encontrariam. Estabeleceu-se um clima desagradável, provocado inconscientemente por mim.

               Deitou-se, perguntei que objeto queria, respondeu que nenhum em especial. Em seguida, virou as costas para mim e pediu um grande véu para que cobrisse as costas, que estavam “expostas” (viradas para mim). Dei-lhe o colchão. Foi para o extremo oposto do divã, disse isso aqui era uma cilada, traição, que tudo era artificial. Falei no pagamento, que era o real, e como ela reagira desde a primeira vez, quando disse que tudo isso pago não era verdadeiro, tendo eu completado que só uma mãe dá isso de graça. Ela contou que na véspera fora o aniversário da morte da mãe e que nada sentira, mas que aqui, no agora, é que estava realizando essa morte. 

               Senti-me inoperante (impotente) e doisse-lhe que estava enganada se acha que eu fazia isso apenas por dinheiro. Sentou e disse-me que eu não a deixara viver toda essa recusa no aqui e agora (era verdade, por insegurança puxei tudo para o real o tirei-lhe o simbólico) e que eu estava dizendo que era uma artista “maravilhosa”, distanciando-a ainda mais dessa mãe arcaica e onipotente. Descobri-me de repente precisando de ajuda, era como se perdesse o meu poder nos dois sentidos, o de dar e o poder puro; e senti-me completamente impotente diante dela. Disse-lhe que fora realmente uma infelicidade ter abordado o problema do dinheiro no início e não no fim da sessão, tirando toda a sua disponibilidade, pois me dissera ter vivido o corpo como nunca|nesses|últimos dias e agora não queria me dizer nada do que se passara.

               Deitou-se outra vez e disse que agora estava com vontadde de relaxar. Começou a abrir a boca em grandes bocejos e a tossir. Disse então que tosse da mesma maneira quando põe a cabeça no peito do marido. Comentou que essa tosse que acontece aqui começa a ter significado la fora. Contou depois que antes de vir aqui problemas com dinheiro, com um cliente para o qual trabalha, ficando com a comissão sem nada lhe dizer; em sua ausência, outra pessoa fez as operações na Bolsa para ele e entregou-lhe a comissão que ela nunca lhe dera; quando ele comentou o asssunto, ela disse que passaria a dispensar a comissão e a entregá-la e ele disse que não queria; o que a chateou foi ter ficado claro que ele soube ou já sabia que ela ficava com a comissão e deixou que ficasse com esse dinheiro, como uma concessão.

               Contou também que está com problemas de dinheiro com um empregado que lhe deve de dois a três mil cruzeiros; agora, ele se diz doente e se ela o mandar embora, perderá essa quantia. Disse que achara muito importante viver tudo isso, que me achara desagradável e antipática, que tudo era falso, até minha voz – uma voz pausada e grave, como que estudada para falsificar essa relação. E que, na véspera, pela primeira vez notara a tonalidade da voz de uma amiga, também pausada e grave...

               Ao sair, propus (uma hora) extra, para que aproveitasse melhor o tempo dessa sessão, substituindo (outra) que pagou sem poder vir. Aceitou, disse que vai ver se consegue vir às 14h30m, para ficar uma hora, como antes. Ao sair, disse, acho que também para me gratificar, que pela primeira vez estava com os intestinos funcionando muitíssimo bem, e que nem mesmo a análise conseguira resolver esse problema.

               Culpabilizei-me ao extremo, ao ponto de dizer no fim o que era verdade: que estava aqui só por ela ter vindo depois de um longo intervalo, pozis estava doente. À noite, fiquei tão perturbada por minha atitude, até perceber que não sou mesmo uma analista, e se tenho minha vulnerabilidade, devo assumi-la; e se misturo, como aconteceu, o que posso fazer ? Acho que também estou falando demais com outros clientes sobre borderline, o que provoca ciúmes. 

6º. Sessão

19 de janeiro de 1977

               Disse ao chegar ter pensado que durante a infância teve inúmeras governantas e que todas elas eram pagas. Deitou-se, teve sono e medo de escuro, e antes disso vivera a morte. Virou de lado e de costas para mim. Gostou do travesseiro de isopor, pediu uma almofada para colocar em seu corpo, dei-lhe duas, contou estar acostumada a dormir com dois travesseiros perto do corpo. Ao tocar nas bolinhas de isopor, disse que isso era gostoso, que começava a relaxar e bocejou várias vezes seguidas. Depois, contou que antes dormia ocupando toda a cama; o marido ficava com um pequeno canto e não a acordava de manhã, era praticamente proibido de fazer isso; agora, ela acorda e rola para o seu lado e sempre o vê sair para o trabalho. 

               Fez movimentos com o corpo, como uma criança ao ser ninada. Pediu que a pegasse nas costas, como se a embalasse, suportou um pouco o contato e, tossindo, retirou a minha mão. Toquei em seus cabelos e deixou-me fazer isso durante mais algum tempo, para depois tossir e pedir que parasse. Peguei suas mãos, aconteceu o mesmo. Coloquei a mão em sua barriga, disse que pesava e tossiu. Comentei que tosse porque não consegue reter o que recebe. Disse ao sair que sente que a experiência com o corpo estava prestes a acontecer, mas o verbal corta essa possibilidade. Repliquei que tenho que dar-lhe dados do real e é falando que não me torno conivente com as suas fantasias. Disse que não compreende, mas prometeu pensar no assunto. 

7º. sessão

28 de janeiro de 1977

               Continua com a mesma intolerância à vivência dos objetos relacionais e ao meu toque. Destrói os objetos, para depois reconstruí-los à sua maneira, brinca, é criativa. Hoje, durante todo o tempo o tema foi a água.

               Começou por pedir um copo de água, disse que era importante. Deitou-se e falou sobre o achar outras pessoas falsas: ela é que era falsa, pois cada pessoa pode ter a sua própria verdade. 

               Disse-lhe depois que se entregou aqui a uma atividade lúdica. E toquei-a, dizendo que o importante era esse toque, ou viver as fantasias através dos meus objetos. Disse-lhe ainda, como conhece Winnicott, que seu problema seria o falso self.

               Embora diga que está fazendo o meu trabalho, faz o que quer, como quer, ainda na sua onipotência de suprir-se e não se deixar receber. Disse que tem pouco a receber da afetividade, invertendo o seu problema: ela é que não se permite receber. 

8º. sessão

4 de fevereiro de 1977

               Chegou pontualmente, trouxe um maiô para viver as experiências, mudou de roupa no banheiro, deitou-se e começou a falar. Sente-se “pecaminosa” cada vez que vem aqui. Pelo local, que é cheio de boates. Tem vergonha. Comentei que dessa vez trocou de roupa e assim sentira mais intensamente a sensação de pecado. Disse que era verdade, que escondera o maiô no fundo da bolsa, morta de vergonha, e que pensara que eu a colocaria na banheira com água, como A lhe contara que eu fizera com ela. Disse-lhe que prretendia fazer isso, mas não hoje, e que o maiô era para que seu corpo ficasse mais exposto ao meu toque e ao dos objetos. Queixou-se de que quando vem aqui eu encho o seu corpo de objetos e ela não tem tempo para relaxar. Concordei, mas acrescentei que ela invertera os papéis: era ela que pedia os objetos, para depois largá-los e transformá-los, criando ela mesma e sem se deixar relaxar.

               Pediu que lesse um texto de Sapir, li a Erotização. Quando acabei, pediu mais. Respondi que isso não era possível, pois uma indução maciça lhe faria mais mal que bem. Que tentasse relaxar. Nessa hora, já bocejava e disse que a parte do corpo que “reclamava” era o estômago. Falei na segunda boca do corpo, que está situado naquele lugar, que era a fome de carinhos e ternuras que nunca tivera.

               Virou-se de lado e pediu que colocasse as mãos em suas costas. Reclamou de minha imobilidade e pediu que mexesse as mãos; respirava com mais intensidade e com mxedo. Perguntei se seria a voracidade, o querer sempre mais. Respondeu ser a consciência de que aquilo era tão bom e maravilhoso e ia acabar.

               Passei o saco plpástico com ar em seu corpo, disse que sua pele sensível como a de um bebê. Antes, contara que, segurando um bebê, constatara que nunca ter imaginado que a pele dele fosse tão macia.

               Contou um sonho. Estava deitada em sua cama, tão grande quanto a do consultório, e aparecia um homem meio amulatado que começava a tocá-la, provocando enorme sensualidade. Levantou-se para fechar a porta que comunicava com o outro quarto, onde estavam o marido e o filho, que lia revistas em quadrinhos. Colocou uma pedra na porta e foi para a piscina fazer amor com o desconhecido. Depois de ter gozado muito viu, quando se retirava de dentro dela, que seu pau era pequeno e estava mole. Espantada, perguntou-lhe como se poderia torná-lo potente outra vez. Disse-lhe que já o havia tornado potente no ato sexual. Concordou e disse não ter pensado nisso. Disse achar ser uma parte dela ainda não desenvolvida sexualmente e perguntou se meu trabalho tinha alguma coisa a ver com o Reich. Respondi que sim, quanto à erotização, ao desbloqueio da libido. Levantou-se, foi ao banheiro mudar de roupa e na volta, disse: “Sentada no sanitário, me vi e me senti tal qual uma menina nua fazendo xixi”.

               Dxessa vez, entregou-se sem defesa à experiência e viveu realmente o seu corpo. Acho que está começando o trabalho agora. Enquanto trabalhava o seu corpo, lamentou que a relaxação não duraria muito tempo, que acabaria por ter que ir embora e que gostaria de ter uma pessoa que a acariciasse dessa maneira.

9º. sessão

14 de fevereiro de 1977

               Solidão total, falta absoluta do sentido do tempo, tudo está vazio, uma tristeza absoluta. Disse que ao contar ao marido a última sessão, ele comentou: “Parece-me ouvir uma cortesã...” Fechou-se para ele e aí começou o processo. O marido disse ainda que cada vez que ela se entregava mais para ele, ela foge em seguida. Contou que uma jovem amiga sua está tendo um encontro extraordinário com um homem e que ela – depois do sonho que contou aqui e das satisfações que teve no consultório – está nostálgica, em busca de um encontro mais rico. Em família é que se sente esvaziada. Prerguntei se já passara por isso na análise, respondeu que não e levantei a hipótese de que está depressiva para elaborar desde que se deixou tocar aqui e se entregou; não contestou e disse que gostaria de ter esse tipo de relação sempre.

               Falamos sobre sua carência, no relacionamento aqui, em que é a mãe que dá e ela que começa a receber, coisa que sente como única na vida. Está zangada com o marido por ele ter dito que esse trabalho está sendo ótimo para a relação dos dois – ela se deixa dormir em seus braços, o que acontece pela primeira vez desde que casaram.

               Entregou-se ao toque, sempre pedindo que a tocasse nas costas, na altura dos rins, tossiu um pouco e ficou com a respiração ofegante que tem sempre que isso acontece. Balança o corpo,em uma cadência como se fosse ninada e meio masturbatória. A|impressão que se tem é de que coloca toda a sensualidade na relação com a mãe. Achou delicioso ser tocada; não pelos objetos relacionais, mas por minhas mãos. No fim, pediu um minuto de silêncio em homenagem à sensação (acontecimento). Conta ser um “seio inesgotável” para a família: dá muito e nada recebe. Falamos na|necessidade desse dar sem fim para compensar suas retiradas. Não tem ainda a justa medida.

10º. sessão

4 de março de 1977

               Mudou de roupa e deitou-se. Falou muito em uma mudança de vida – está mais flexível e desfrutando o prazer das coisas, coisa que nunca se permitira. Falou no vazio, disse saber ser uma mudança e enquanto não o suprir com criatividade, sentirá sempre esse vazio.

               Falei do vazio pré-genital (Winnicott) ; ela compreendeu e descobriu duas bolinhas de plástico soltas e teve a surpresa de constatar que eram moles, maleáveis e souples. Disse-lhe que foi ela que perdeu a rigidez.

               Bocejou muito tempo até começarmos o trabalho do corpo. De algum tempo para cá, esse trabalho consiste em um toque direto das minhas mãos em suas costas; ela o vive com grande sensualidade, geme, suspira e dá gritinhos ou canta, balança o corpo como quem é embalada e se masturba. Pediu que a tocasse em todo o corpo e disse ser essa a primeira vez que se entregava a um toque sensual sem ser cobrada para uma relação sexual. Falei no pré-genital, que usufriui o mesmo no contato com o corpo da mãe, e da voracidade. Disse então que uma parte sua ainda estava bloqueada, sentia-se nua, mas quanto à questão do tempo, não mais a controlava, deixava-a para mim. Tenho a impressão que vai acabar em um choro solto u em organsmo. Quando acabou e se vestiu, disse sentir uma liberdade muito maior com o corpo; que agora se deixa ver de calcinha e sutiã pela filha, coisa que nunca admitira antes. Nas lojas, troca de roupa com liberdade, e começa a sentir a mesma coisa na vida. 

11º. sessão

10 de março de 1977

               Contou estar mudando muito lá fora: está criativa, entrou em contato com os netos, está com o corpo mais livre.

               Tentei tocá-la através de suas próprias mãos, não aceitou. O que quer é meu contato direto, mas sua respiração torna-se ofegante, já nem sei direito o que há por trás disso, se sua sensualidade, lado pré-genital; e o meu lado, o que se passa afinal ? Fiz um ato falho: não vim ao consultório e foi preciso que me telefonasse (marcara uma hora mais tarde em minha agenda). Claro que estou embananada, sem saber como passá-la do meu toque direto para os objetos, o que seria importante para elaborar sua voracidade. 

12º. sessão

24 de março de 1977

               Entrou e ao ver o lençol vermelho, disse que era “o circo”. Atrasada, perguntou se vestia o maiô, não mudou de roupa e deitou-se. Em silêncio, deixei que se passasse um intervalo. Perguntou com que objeto trabalharíamos hoje.

               Peguei uma almofada e passei-a em suas costas. Depois de algum tempo, tirou a blusa e ficou de sutiã. Continuei a passar a almofada e ela tentou comandar o ritmo. Disse-lhe que não podia atender ao seu pedido, pois ela usava sua onipotência e não havia entrega. Nada sentiu de bom, chorou a lembrança das outras vezes em que sentia todo o corpo erotiszado. Depois, sentiu a cama e o lençol vermelho como doença e sangue. O silêncio e a pausa que fazia foram vividos por ela, que estava de costas, como uma expectativa de coisas boas e más que poderiam acontecer.

               Descobriu que o marido a imobiliza e não gostou. Sente ser apenas um objeto sexual para ele. Falei de seu problema em sentir a afetividade, transformando todos os toques em sensações eróticas. Disse para pensar nela, que talvez esteja projetando nele os seus problemas. Disse que sai daqui vazia, sem nada. Não teve os toques eróticos com minhas mãos. Quando se levantou do divã, perguntou se eu queria lhe falar algo sobre a sessão. Respondi que não, que sairia muitas vezes daqui assim. Para ir-se, falou em seus projetos de trabalho. 

    

   

  

 

                 

ID
65788